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"Man Ray em Paris" nos convida a uma intrigante imersão na mente de um artista completo que buscava em sua arte uma fonte de inspiração.

“Man Ray em Paris” nos convida a uma intrigante imersão na mente de um artista completo que buscava em sua arte uma fonte de inspiração.


AApreciar a obra de Man Ray é entrar em contato com um mundo em que os acidentes de percurso são mais valorizados que as metas atingidas. Uma ode ao inesperado, ao imprevisto, aos processos de tentativas e erros atrelados ao ato de ser humano. É uma coleção de trajetórias incertas e desfiguradas que ressignificam o ideal e amplificam tudo aquilo que é intermediário, que está ‘no meio do caminho’, e que passa despercebido na incessante busca pelo sucesso inexorável que cegamente perseguimos.

A exposição Man Ray em Paris encontra-se em vigor no CCBB de Belo Horizonte até 17 de fevereiro de 2020, com cerca de 250 obras divididas em 5 sessões, exibidas numa curadoria que parte da trajetória criativa do artista, apresentando a diversidade técnica e temática das peças. A mostra consiste numa intrigante imersão à mente de um fotógrafo, pintor, estilista e cineasta que, acima de tudo, buscava na ciência do ofício uma fonte de inspiração e uma forma de quebrar barreiras. Trata-se de uma oportunidade valiosa (e inédita, no Brasil) para emprestar à memória do artista um olhar futurista sobre a sua obra quase centenária. Algo que nos torna parte do processo que suas assinaturas tanto intensificam.

Exposição Man Ray no CCBB BH (Foto: @NereuJr)

Reconhecido como um dos maiores expoentes do surrealismo na fotografia, Emanuel Radnitzky (ou Man Ray) se consolidou também como um fotógrafo comercial, especializando-se em ensaios para revistas de moda. Sua mentalidade criativa e empreendedora, aliada aos bons contatos e convívios, o colocou ao lado de figuras colossais da arte moderna, incluindo Pablo Picasso e Salvador Dali. Embora nascido na Filadélfia e crescido em Nova York, suas raízes se firmaram na França, cuja capital efervescia o verdadeiro hotspot para mentes criativas do mundo ocidental à época. Apadrinhado por Marcel Duchamp, ícone do Dadaísmo, Radnitzky transitou entre diferentes ofícios enquanto conquistava os olhares da aristocracia francesa.

Na exposição vigente, é possível verificar diferentes contornos que caracterizam o legado do artista. Podem ser os contornos de uma mão, de um abajur, de um manequim ou ainda a sombra de uma série de cabides entrelaçados. Além de fotógrafo, elaborou pinturas (seu ofício de origem), objetos, filmes e esculturas. Entre fotos de poses estranhas e modelos bem vestidas, chamam atenção os fotogramas, ou rayografias (de onde seu pseudônimo tem origem). Numa descrição breve, seria a sobreposição direta de objetos sobre o papel fotográfico, configurando estéticas erosivas, dinâmicas e provocativas de artefatos comuns. Nas palavras do artista, não passam de pinturas feitas com uma tinta inesgotável: os raios de luz.

Outra de suas técnicas que pode ser encontrada em várias obras expostas é a solarização, em que uma lâmpada acende subitamente no momento da revelação fotográfica. Um acidente? Uma invenção! É como se vários retratos passassem a apresentar contornos em negativo, sem alterar radicalmente a distribuição de tonalidades no “recheio” das figuras. Parece uma linha de carvão delimitando queixos, narizes e bustos de modelos como Lee Miller ou Natasha. De um jeito poético, Man Ray escrevia e iluminava as formas mais tímidas e desengonçadas de suas musas.

A curadora da exposição Emanuelle de l’Eletocais junto a obra de Man Ray (Foto: @NereuJr)

Todo o conteúdo da exposição reflete o período mais prolífico da carreira de Man Ray, remetendo à sua primeira passagem pela França (entre 1920 e 1940). Um painel cronológico dá as boas vindas logo no primeiro momento para situar até mesmo o mais leigo dos visitantes. A curadoria de Emanuelle de l’Ecotais se revela bastante sensível na segmentação temática, dando um espaço convidativo para o visitante conhecer gradativamente aquilo que torna o legado de Man Ray tão único e tão relevante para os dias atuais.

Podemos traçar paralelos com tendências das artes visuais na contemporaneidade. As “selfies” que ele próprio tirava dos colegas e da elite parisiense (e até uma de si mesmo) para reafirmar como cada um queria ser visto pela sociedade. Os filtros que distorcem, contrastam e expandem as distribuições de luz, refletindo o humor e a curiosidade de quem segura a câmera. Os “packs” de partes íntimas que mais do que provocar, refletem uma jornada de autoconhecimento e autopreservação.

Sem ir muito além: a retratação de olhares particulares sobre a cidade, sobre locações internas, ou sobre natureza – tema que, numa das descrições, é explicitado como de pouco interesse para Man Ray. Uma revelação coerente sobre quem busca acompanhar processos e adiar para séculos futuros as definições rígidas e estáticas da angustiante metafísica.

Imerso nas sangrias socioculturais do século XX, Man Ray revela-se mais como Epicuro, ou como Caravaggio: suas peças lidam com os prazeres mundanos e as imperfeições antropofágicas que nos instigam e nos aproximam de um fim comum. Em sua obra, a arte é a retratação da falha, do cansaço e da fadiga que envolvem corpos ainda preocupados e curiosos com a luz do dia. Man Ray em Paris traz um olhar lúdico e sádico sobre formas que sempre pareceram tão bem encaixadas até o descobrimento de que podemos desmontá-las repentinamente. Mais ou menos como o século XXI.

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