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Crítica – “Nós”

[tempo de leitura: 4 minutos]

Sob a lona do circo, o show deve continuar. A sociedade do espetáculo se retroalimenta de tendências culturais cientes do seu prazo de validade. Entramos nessa brincadeira como os primeiros pacientes de Freud numa sessão hipnótica. Assumimos o papel de cobaias passivas em experimentos de alto risco, capaz de deixar sequelas para múltiplas gerações. Criamos uma versão daquilo que consumimos, daqueles a quem amamos e das aspirações que cultivamos. Finalmente, criamos uma versão de nós mesmos. Aquela que desesperadamente estampamos enquanto condicionamos nossas curiosidades e desejos a um padrão de comportamento.

Adelaide (Lupita Nyong’o) é uma mulher negra que carrega um segredo, um trauma de infância. Não discute nada com seu marido, Gabe (Winston Duke), ou com seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex). Exibe um olhar assustado, contrastante com a energia bem humorada de seu esposo. Num espaçoso SUV, convenientemente adesivado pela representação da família feliz, os quatro partem em uma viagem à praia, onde ficam numa casa de veraneio. Acompanhados por vizinhos brancos e bem vividos que incluem a família Tyler, cuja mansão possui gerador elétrico e um arrojado sistema operacional, tudo parece ocorrer dentro do esperado. Até que, durante a noite, invasores cercam a casa e aprisionam Adelaide e sua família. Os responsáveis? “Somos nós”, exclama o pequeno Jason.

Produzido, escrito e dirigido por Jordan Peele, Nós se apropria rapidamente de elementos de suspense para encarnar uma corajosa alegoria sobre a atual sociedade norte-americana. A trilha chamativa de Michael Abels é eficiente ao explorar timbres industriais e trabalhar melodias diegéticas, ressignificando motifs de cenas de perseguição e beats de gangsta rap de modo inédito e simultâneo. Lupita Nyong’o, em um papel extremamente complexo, atribui a dose correta de profundidade à sua personagem, sem soar caricata ou subjetiva demais. O design de produção de Ruth de Jong é funcional ao situar nossos personagens em lugares desconfortáveis, com menção especial aos espaços dedicados ao clímax do longa: uma mistura inusitada envolvendo árvores, espelhos, corredores de mármore, dormitórios macabros e um saguão de metrô.

Precedido por uma curiosa anotação sobre esgotos e linhas de trem abandonadas, chegamos a uma espécie de prólogo, situado em 1986. A principal indicação temporal, além da legenda óbvia, é a exibição de anúncios datados numa TV de tubos. Há uma atenção especial sobre a campanha “Hands Across America”, em que milhões de americanos se deram as mãos formando uma corrente em várias cidades dos Estados Unidos. A proposta serviu para levantar fundos e reuniu muitos artistas e figuras públicas relevantes da década. Entre elas, Michael Jackson, que também inspira a camisa recém adquirida da então garotinha Adelaide. Uma sensação de abandono conduz a menina para uma tenda e seu letreiro chamativo: “find yourself”. A descoberta se revela epifânica do modo mais enigmático possível. Seguimos para os dias atuais.

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Pequenos flashbacks nos trazem de volta àquela estranha sequência. Queremos saber mais, mas parece que não temos esse direito. Rapidamente, o filme parte do ponto de virada para a ação desenfreada. Pistas bastante sutis abrem gradualmente os contornos psicológicos da protagonista, algo fundamental para o sucesso da recompensa que receberemos adiante. Novamente, reservo meus elogios ao trabalho de Lupita Nyong’o, que demonstra um controle absoluto sobre o desenvolvimento de sua personagem (bem como de sua versão paralela) e acaba causando um delicioso estranhamento no espectador.

O fatídico momento em que surgem as versões paralelas de cada membro da família causa um misto de medo e mal-estar. Algo sabiamente balanceado por alívios cômicos espontâneos que só não beiram o absurdo por serem alinhadas com o estilo dinâmico e imprevisível do diretor (impossível não rir da referência inesperada ao N.W.A). Alguns momentos parecem não conversar diretamente com a trama (ou tomam tempo demais), como quando Gabe enfrenta seu “duplo” em uma lancha recém-adquirida. A cena é bem executada, porém dispersa a tensão de um outro ótimo momento (que é Zora brincando de “pega-pega” com a sua versão macabra). Duplos de outros personagens e núcleos familiares vão se revelando, e o que parecia ser uma versão de “Funny Games”, do Michael Haneke, para o BET Awards se expande para um apocalipse zumbi do sonho americano.

País que investiu um século inteiro em difundir valores como os de liberdade, altruísmo e democracia, os Estados Unidos encabeçam um alvo preferencial de Peele. As mesmas brincadeiras com as cores da bandeira americana vistas em Get Out são percebidas aqui. Uma insistência com o número 11 é anunciada na forma de pregações de um versículo bíblico, pincelada pela exibição do World Trade Center, reforçada pelos algarismos de um relógio e até mesmo levantada a partir de um plano-detalhe sobre as frestas de uma escada rolante ensanguentada (remetendo também às listras vermelhas da famigerada flâmula). Uma rima interessante com a imagem de pessoas de mãos dadas que marcaram o “Hands Across America” vai de encontro às representações nos cortes de papel vermelho feitos pela versão paralela de Adelaide. Frutos de uma negação intermitente e desesperada à solidão predestinada.

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Nós é um exercício sobre os ícones que caracterizam o sentimento de se pertencer a uma nação. Um ensaio conflitante sobre a ilusão e a necessidade de se reproduzir valores engaiolados numa determinada parcela do tempo em que vivemos. Enquanto não encararmos e avaliarmos diretamente aquilo que somos e o que propagamos, novas versões descrentes e amarguradas podem despertar no consciente coletivo. As soluções hipnóticas do escapismo ambulatório sempre estarão lá, mas até quando serão suficientes?

Biólogo, educador e escritor. sempre gostou de fazer perguntas. nunca se achou bom em respondê-las.

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