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"Years and Years" retrata uma distopia em um futuro próximo, para provocar reflexões a respeito do mundo contemporâneo.

“Years and Years” retrata uma distopia em um futuro próximo, para provocar reflexões a respeito do mundo contemporâneo.


“– É tudo culpa de vocês. Os bancos, o governo, a recessão. Os Estados Unidos, os políticos. Absolutamente tudo que deu errado é culpa de vocês.

– Levo a culpa de muita coisa, mas como eu sou responsável pelo mundo inteiro?

– Porque nós somos. Cada um de nós. Podemos ficar aqui o dia todo culpando os outros. Culpamos a Economia, a Europa, o clima. Como tudo está fora de controle, como somos desprotegidos, pequenos e frágeis. Mas é tudo nossa culpa. Vocês sabem por quê. É a camiseta de uma libra. Achamos uma pechincha, adoramos e compramos. E o dono da loja ganha cinco míseros centavos pela camiseta. E um camponês, em um campo qualquer, ganha 0,01 centavo. Damos nosso dinheiro e participamos desse sistema a vida toda. Eu vi que tudo começou a dar errado nos supermercados, quando substituíram as mulheres dos caixas pelos caixas automáticos. Quando apareceram, vocês protestaram? Compraram em outro lugar? Não! E agora todas aquelas mulheres não existem mais. E eu acho que gostamos dos caixas automáticos. Queremos isso. Porque podemos passar, pegar nossas compras, sem ter que olhar nos olhos daquelas mulheres. A mulher que ganha menos que a gente. Então, sim, é nossa culpa. Esse é o mundo que construímos. Parabéns! Saúde”.

SSabe-se que o atual cenário político tem desencadeado uma maior procura por narrativas distópicas. Livros como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e O Conto da Aia, de Margaret Atwood, passaram a figurar na lista de mais vendidos. A última obra, inclusive, inspirou a série homônima da Hulu, também uma das produções mais bem-sucedidas dos últimos anos.

Ao mesmo tempo, não conseguimos parar de usar o bordão “isso é muito Black Mirror”, já que parecemos constantemente chocados em relação ao avanço tecnológico e mudanças sociais como um todo. Buscamos algumas respostas na ficção, ao passo que também criamos novas perguntas. Diante deste panorama, a série Years and Years, da HBO, cumpre um papel fundamental em retratar uma distopia que se passa em um futuro próximo, suscitando reflexões sobre os mais diversos temas.

Produzida pela BBC, a produção acompanha uma mesma família, de Manchester, por 15 anos. No primeiro episódio, sabemos que Donald Trump está no fim do seu segundo mandato, ao passo que observamos também a ascensão de uma política populista de extrema-direita, chamada Vivienne Rook (interpretada por Emma Thompson). Qualquer semelhança com figuras da vida real não é mera coincidência: ela é admirada por ser “sem filtros” (basicamente por não pensar antes de falar), aparece como uma alternativa“antipolítica”, tem um discurso raso e rancoroso. Ao longo dos capítulos, Vivienne vai se tornando cada vez mais conhecida na Inglaterra.

É preciso destacar a complexidade com que os membros da família são construídos. Em apenas seis episódios, fica a sensação de que conhecemos todos os personagens há anos. Não há espaço para o maniqueísmo: eles são passíveis de identificação, e nenhum realmente se encaixa no arquétipo do herói exemplar. Rosie (Ruth Madeley), por exemplo, é uma mãe solo cadeirante, mas sua multifacetada personalidade está longe de obedecer a algum estereótipo da “mulher com deficiência”. O mesmo acontece com sua irmã Edith (Jessica Hynes), que vai muito além do arquétipo da “ativista do século XXI” e é uma excelente personagem, repleta de camadas.

Emma Thompson é uma versão britânica de Donald Trump na série

Não há dúvidas de que a série bebe na fonte de Black Mirror, especialmente em se tratando da trama de Bethany (Lydia West), uma garota que quer virar transhumana (ou seja: ela quer que sua consciência seja carregada para a nuvem, para poder viver para sempre, digitalmente). Neste futuro próximo, os filtros de bichinhos do Instagram migram para a vida real – adolescentes podem utilizar essas máscaras em todo o momento, inclusive durante um habitual almoço de família. Na distopia de Years and Years, o cacau praticamente desapareceu, assim como as abelhas. Uma das perguntas de rotina do médico é: você quer saber sua expectativa de vida?

A produção trata sobre o aquecimento global, o crescimentos dos trabalhos informais (um dos membros da família, Steven, chega a ter 11 empregos), o papel decisivo das fake news para as corridas eleitorais, além de trazer uma reflexão potente sobre as consequências da xenofobia. Um dos principais acertos da série é o equilíbrio entre crítica social e alívio cômico. O humor britânico é a alma de Years and Years fica difícil imaginar os (excelentes) diálogos sem o característico sarcasmo dos ingleses.

A família Lyons

As reflexões provocadas pelos seis episódios da série são densas e absurdamente aplicáveis para a realidade. Mesmo com tantos “socos no estômago”, a produção não passa uma mensagem desesperançosa. Ao acompanharmos aquela família, não é difícil compreender que o afeto nos salva do definhamento. Se “a culpa é toda nossa”, como diz Muriel (a matriarca), no diálogo citado logo no início deste texto, a solução também passa por todos nós. Algumas respostas podem estar sim nas distopias como Years and Years, mas outras estão no cotidiano, naqueles que estão ao nosso lado diariamente.

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