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“Você” é chocante e assustadoramente verossímil, usando o espelho da realidade para criar um thriller sobre stalker e fazer críticas socioculturais.


Uma mulher chega na livraria. “Quem é você? Pelo seu jeito, uma estudante. Sua blusa é solta. Não está aqui para ser cobiçada, mas as pulseiras fazem barulho. Você gosta de um pouco de atenção. Certo, caí na rede”. Protagonizada por Penn Badgley (o Dan, de Gossip Girl) e Elizabeth Lail (Ana, de Once Upon a Time), a série Você se desenrola a partir da obsessão do livreiro Joe com a estudante Beck. A produção, que é original do Lifetime, viralizou apenas quando encontrou, na Netflix, o espaço para se tornar um fenômeno global. A série é baseada em um livro homônimo, escrito pela autora norte-americana Caroline Kepnes.

https://www.youtube.com/watch?v=h-aO-v67jFk

Você provavelmente conhece o arquétipo de Joe: aquele cara que viu muitas comédias românticas, tem fama de nerd, usa a expressão friendzone e se sente constantemente injustiçado quando é rejeitado, pois acredita que, poxa vida, “as mulheres só se apaixonam pelos homens errados”. Na ficção, integram esse time personagens como Ross Geller (Friends), Ted Mobsy (How I Met Your Mother) e… Dan Humphrey. Sim, o personagem de Penn Badgley em Gossip Girl se assemelha com o protagonista de Você. Ambos fazem o tipo “cult”, levam um estilo de vida mais despojado, se tornam obcecados por uma loira dos olhos claros, se sentem no direito de seguir ela por Nova York, não hesitam na hora de manipular a parceira… E acham que são os últimos caras românticos do mundo.

É claro que, por conta do seu comportamento violento, o protagonista de Você é ainda mais problemático do que Ross, Ted e Dan. Joe enxerga as mulheres da mesma maneira que descreve seus livros: como criaturas frágeis e vulneráveis, que precisam urgentemente de proteção. Ele se sente no direito de se intitular como feminista e criticar o machismo de outros homens, mas, convenientemente, não compreende que sua maneira de enxergar todas as mulheres como donzelas em perigo é bastante sexista.

É chocante e assustadoramente verossímil como a série retrata a quantidade de informações que disponibilizamos nas redes sociais. Hábitos, gostos, amizades, relacionamentos afetivos, endereços: todos esses dados estão a um clique de distância de qualquer desconhecido. A direção faz um trabalho interessante na maneira em que representa os dispositivos tecnológicos. É eficiente, principalmente, em mostrar o sentimento de ansiedade que o imediatismo das redes sociais causa em qualquer um.

Na produção, é explicitado também como a imagem que montamos de nós mesmos nas redes pode ser distorcida. Beck, por exemplo, faz a linha “centrada e zen” no Instagram, sempre postando fotos de posições de Yoga. Suas confusões e frustrações não são mostradas. As amigas da protagonista, todas da alta-sociedade, também passam imagem irreais, já que parecem super unidas no Instagram, quando, na realidade, o grupo é cheio de relações conturbadas.

Você acerta ainda em mostrar que, nos dias atuais, todo mundo tem um lado stalker. É interessante que, justamente Joe, o cara que não tem nenhum perfil em rede social e se descreve como um homem “à moda antiga”, é o que mais utiliza as plataformas digitais para conseguir informações e perseguir suas vítimas. O personagem que aparentemente é super desligado na verdade é o mais conectado de todos (novamente, é difícil não se lembrar de Dan Humphrey).

Nos momentos em que Joe se descontrola, as imagens ficam difusas e a trilha sonora cria o clima de tensão, crescente a cada capítulo, até atingir o ápice no final. A direção utiliza câmeras com bordas distorcidas, que auxiliam na percepção de como o olhar do protagonista é turvo. Outro acerto de Você é o ritmo: para o espectador, não é tarefa difícil maratonar a série em pouquíssimos dias. Praticamente todos os episódios terminam com cliffhangers, muito eficientes em prender a atenção.

Uma falha que pode ser apontada em Você é a falta de verossimilhança em algumas cenas. Logo no primeiro episódio conhecemos a casa de Beck, toda envolta por vidro. Joe consegue ver, da rua, a garota trocando de roupa, transando, saindo de toalha… Difícil de acreditar, né? As atuações definitivamente não deixam a desejar. Em geral, os personagens da série são construídos com pouco maniqueísmo. Beck, por exemplo, está longe de ser uma garota perfeita – mas mesmo assim, não deixa de ser uma vítima da relação abusiva em que se encontra. Peach (Shay Mitchell), a melhor amiga de Beck, parece se adequar 100% ao arquétipo da patricinha rica. Porém, no decorrer da temporada, percebemos que ela é mais complexa. Joe, o abusador, também não é totalmente mau. Em alguns momentos, seu lado humanizado fica evidente. Cabe ao espectador o bom senso de não justificar todas as atrocidades cometidas por ele.

É importante ressaltar que Você não é apenas sobre um super stalker. A produção aborda e suscita reflexão sobre a própria construção da masculinidade heteronormativa, que determina questionáveis papéis atrelados ao gênero. Homens são criados justamente para “protegerem” e “salvarem” mulheres, enquanto elas (e aí entra a construção social da feminilidade) devem ser frágeis e vulneráveis. Provavelmente muitos homens héteros poderiam se identificar (e até se simpatizar) mais com Joe se o personagem  não tomasse atitudes tão extremas. Afinal de contas, muitos podem pensar, ele só quer proteger sua amada. Joe só se esqueceu de perguntar se ela quer protegida.


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