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Em "Lit", Lay Zhang busca a expansão cultural da China em um álbum que dialoga com a ópera de Pequim e o filme "Adeus, Minha Concubina".

Em “Lit”, Lay Zhang busca a expansão cultural da China em um álbum plural que dialoga com a ópera de Pequim e o filme “Adeus, Minha Concubina”.


NNo ano de 2020, o cantor chinês Lay Zhang apresentou o trabalho mais ambicioso de sua carreira. Sob o mantra de “levar a China para o mundo”, o astro deu mais um passo para a consolidação desse objetivo e avançou com sua arte para outro nível de comunicação com o ocidente através do álbum Lit. Com abordagem diferente de NAMANANA, que ultrapassou o Top 200 nas paradas de sucesso da Billboard e apresenta uma visão otimista da ponte entre a China e o restante do mundo, Lit é construído a partir de uma narrativa excêntrica que faz com que os ouvintes, e o próprio Lay Zhang, saiam da zona de conforto.

 — Leia a crítica do álbum “Lit”, de LAY 

Capa do álbum

O álbum com 12 canções foi lançado em duas partes, nos meses de junho e julho, para melhor atender às demandas de um público acostumado com serviços de streaming repletos de informações que se perdem e são esquecidas com facilidade. A proposta dos lançamentos em datas distintas é para que os ouvintes possam ouvir todas as faixas sem se cansar e, também, funciona como uma forma de demarcar os dois conceitos que o cantor deseja transmitir.

As seis primeiras faixas, que começam em Lit e vai até Soul, apresentam um retrato da vida passada na sociedade chinesa, especificamente a história do rei Xiang Yu que, em 200 anos a.C, governou um vasto território na China. Do início até o meio do álbum, Lay Zhang delineou uma trajetória composta pelo alter ego do monarca Yu e, na outra metade, exibe uma representação de si mesmo como reencarnação do imperador.

Em uma fusão eclética, Lit é um trabalho experimental que traz a história do país asiático como protagonista em uma narrativa contada através do trap, R&B, hip-hop e reggaeton, tendo como base alguns instrumentos tradicionais como Guzheng (cítara) e flauta de cabaça.

 

Transitando entre a tradição e o contemporâneo, Lay Zhang não apenas abraçou a ancestralidade, mas também utilizou de uma importante tática para gerar convergência entre os dois polos: o uso de produções chinesas já conhecidas mundialmente para aproximar o ocidente e a China. E é através deste recurso que, ao ouvir o álbum, nos deparamos com referências da Ópera de Pequim e do premiado filme Adeus, Minha Concubina.

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RELEVÂNCIA CULTURAL

A Ópera de Pequim surgiu no século XVIII e, após conquistar a capital chinesa e os outros estados, gradualmente se tornou mundialmente conhecida. A arte dramática dominante na China é composta por canto, dança, recitação, atuação e artes marciais. Entre os elementos identitários da ópera, destaca-se a extravagância visual impressa nos cenários da peça, nas maquiagens e nos figurinos do elenco, sempre dotados de muitas cores chamativas, formas geométricas, desenhos e cortes diferenciados.

Desde o princípio, a ópera chinesa era considerada uma manifestação artística destinada às massas, com alcance acessível tanto para a corte imperial, quanto para as classes mais populares. Tal flexibilidade de público fez com que o espetáculo fosse disseminado entre os turistas e, logo depois, pelo restante do mundo, tornando a Ópera de Pequim uma das mais famosas globalmente, sendo reproduzida em dezenas de países. O impacto foi tão notório que a UNESCO, em 2010, classificou a atração como Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade.

Capa do single “Jade”

Neste panorama, o álbum Lit incorpora referências derivadas da ópera chinesa mais famosa do mundo, Adeus, Minha Concubina, que conta a história dos últimos dias do rei de Chu, Xiang Yu, e de sua concubina favorita, Consort Yu. Em uma guerra pela unificação de reinos, o imperador – conhecido popularmente como super-herói e hegemon – passou cerca de cinco anos disputando território com o adversário Liu Bang. O impasse resultou nas tropas inimigas cercando Xiang Yu e o deixando indefeso, na dominação de Chu e no suicídio da concubina horas antes do embate final.

A primeira aparição histórica no Lit surge a partir da segunda faixa do álbum, Jade, que foi o pré-lançamento que introduziu o público à proposta conceitual do álbum. A música começa com um arranjo composto por instrumentos tradicionais chineses, com sonoridade quase idêntica à passagem de cenas da ópera. A inspiração, já explicitada por Lay Zhang diversas vezes, se faz presente também na arte de divulgação do single, em que o cantor aparece vestido exatamente como a concubina Yu.

 — Leia a crítica do álbum “Lit”, de LAY 

Além da representação visual da concubina, a caracterização de Lay Zhang acompanha as regras sociais vigentes antes de 1870, em que mulheres não eram permitidas atuar e as personagens femininas do espetáculo eram performadas por homens. Nesta conjuntura, Jade ainda utiliza de elementos linguísticos para o aprofundamento na história chinesa, com o jogo de palavras entre You e Yu. Na sentença principal “Ain’t nobody shine like yú”, no refrão da música, o cantor afirma que “ninguém brilha como jade” (que em mandarim se pronuncia , e é a pedra preciosa usada por monarcas chineses), como Yu (a concubina) e como você (a palavra “you”).

Lay Zhang no clipe de “Jade”

No videoclipe de Lit, a faixa-título do álbum homônimo, o momento inicial é marcado por uma recitação cuja tradução é: “Eu costumava ser tão poderoso para levantar montanhas e governar o mundo. Mas minha sorte mudou e meu cavalo não pode correr. Posso cuidar do meu cavalo, mas o que devo fazer com você, minha dama?”. O trecho em questão é uma parte da ópera Adeus, Minha Concubina, dito pelo rei Xiang Yu antes da concubina se suicidar com uma espada, com o objetivo de não atrapalhá-lo no campo de guerra. Durante a declamação, Lay Zhang é rodeado e encurralado por inimigos que o apontam espadas, exatamente como Xiang Yu em seus momentos finais, reafirmando a existência do alter ego do rei hegemon na primeira parte do álbum.

A conotação histórica do álbum, no entanto, não se restringe apenas à ópera, mas se estende também ao filme Adeus, Minha Concubina. O longa chinês lançado em 1993, e dirigido por Kaige Chen, tem um papel significativo no intuito de expansão cultural proposto por Lay Zhang. O enredo acompanha dois meninos que se conheceram em uma escola de ópera em Pequim, no ano de 1924. A amizade resultante entre esses jovens dura quase 70 anos e enfrenta alguns dos momentos mais difíceis da história da China.

A intenção do cantor pode ser percebida tanto na abordagem cinematográfica do videoclipe de Lit, que faz uma alusão estilística ao filme chinês, quanto pelo fato de Adeus, Minha Concubina ser uma das produções mais famosas da China no exterior. Em 1993, o longa foi o vencedor da Palma de Ouro, prêmio de maior relevância no Festival de Cinema de Cannes. Entre as principais conquistas do drama musical, destacam-se as vitórias no BAFTA, Globo de Ouro e o Blue Dragon, como Melhor Filme Estrangeiro, além das indicações ao Oscar em duas categorias.

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Cena de “Adeus, Minha Concubina”

No longa, o protagonista, vivido por Leslie Cheung, é ator desde pequeno e é levado ao estrelato por performar como a concubina Yu nos palcos. O filme traz um personagem gay como principal elemento da narrativa e aborda questões de gênero em uma época em que o mundo era muito mais conservador do que é atualmente – esta foi uma das razões para que o filme fosse banido na China.

A androginia retratada pelo personagem de Leslie Cheung no filme faz com que um importante político da cidade se apaixone pelo protagonista, sob a justificativa de que os traços do ator no palco entrelaçam o feminino e o masculino a ponto de apagar a fronteira entre os dois gêneros. Neste contexto, a música Jade entra novamente em discussão por ser a única faixa em que Lay Zhang se apresenta como a concubina Yu, ao invés do imperador Xiang Yu, seu alter ego.

A junção do feminino e masculino também é perceptível na letra de Jade, em que a construção sequencial das frases demonstram um diálogo entre o rei e sua amante Yu. A composição do pré-single pode ser interpretada como uma conversa em que o imperador se orgulha de receber os conselhos e o apoio da concubina, enquanto a mesma afirma sempre o acompanhar nas guerras – assim como na história real, exceto na última luta. Fica ainda mais claro no trecho em que o cantor atribui à pessoa amada a característica de “super-herói” e se disponibiliza a ser um “sidekick” (nome dado ao companheiro de aventuras ou amigo do personagem principal).

Lay Zhang no clipe de “Lit”

No decorrer das seis faixas iniciais, a primeira fase do álbum Lit termina com a música Soul, que fala sobre passar adiante um legado e renascer como uma nova alma. É o ponto de partida em que Lay Zhang abandona o alter ego Xiang Yu, que falhou em conquistar a China e expandir seu reinado, e inicia a saga real do próprio cantor em busca do êxito. A transição se solidifica com a passagem de Soul para Changsha, a sétima canção intitulada com o nome da cidade chinesa em que Zhang nasceu – ou neste caso, reencarnou. É quando o repertório se afasta do experimental e assume uma musicalidade pop moderna, se comunicando com outros continentes a partir de gêneros mais conhecidos e melhor aceitos mundialmente.

LOTUS
Lit ainda é ilustrado visualmente pelo conceito da flor de lótus. A planta aquática, que consegue nascer bela e forte mesmo em ambientes inóspitos, é referenciada como pureza do corpo e mente, além de significar força, elegância, beleza e perfeição.

Com o conceito expresso em Lit, Lay Zhang une o popular ocidental com história tradicional para mostrar ao resto do mundo a relevância cultural e artística de seu país. Ao utilizar obras chinesas aclamadas mundialmente como referencial para um trabalho totalmente inovador, o cantor mostra-se disposto não apenas a se encaixar no pequeno espaço que lhe foi disponibilizado enquanto artista asiático mas, também, a tomar posse do grande terreno que a grandiosidade de sua música merece por direito.

 — Leia a crítica do álbum “Lit”, de LAY 

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