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Kanye West completa 15 anos de carreira em 2019, quando seu primeiro álbum faz aniversário, deixando um legado para a música e o hip-hop.

Pegar um álbum e chamar de clássico, hoje em dia, soa banal. Efeito colateral da descentralização que marca a indústria fonográfica desde os tempos em que o Napster bateu a porta. Aqui no Brasil já não temos mais a MTV. No mundo atual, até o Grammy é alvo de chacota e desinteresse. Quem ainda vende um milhão de cópias físicas na primeira semana? Aliás, o que são cópias físicas? Ver seus amigos se aventurando em uma carreira musical já não é tão extraordinário quanto parecia há 10, 15 anos. Não estou falando que isso é ruim. Querendo ou não, estamos cansados de saber que as coisas mudam. É um privilégio acompanhar certas mudanças e acredito que fazer parte delas consiste numa dádiva existencial ainda maior. Persistência, sorte, predestinação ou uma mistura disso tudo fez de Kanye West um pivô na linha de frente desse cenário amorfo e tudo isso começou lá atrás.

2004 já me parece bem distante. O mundo político nutria-se do alarmismo belicista característico da era Bush-Cheney. Grandes democracias ainda gozavam de notória estabilidade, enquanto o fluxo de informação permanecia controlável. A internet soava mais como uma ferramenta avulsa que não interferia drasticamente no cotidiano que nem hoje. Os jogos olímpicos modernos comemoravam edição histórica na Grécia, que sequer antecipava os maus lençóis que cobrem sua economia vigente. Se o cenário global (ou local) não era lá tão confortável, forças estabelecedoras faziam parecer sê-lo. Qualquer um com um ímpeto de questionamento sabia que um novo padrão de dinamismo se fazia presente. Prever o quão rápido esse padrão se consolidou e nos consumiu já não me parece tão óbvio assim. Ainda bem que, perante conceitos e contextos emergentes, temos a arte para nos servir de guia.

Em To Pimp a Butterfly, Kendrick Lamar exalta a importância do meio como espaço de aprendizagem e amadurecimento. Em Nothing Was the Same, Drake expõe seu carinho pela fase da adolescência e sua vontade de tomar a frente e o centro de seu destino. Em Oxnard, Anderson .Paak é obrigado a reverter cenários de luto em sensações hedonistas. Muitos outros álbuns de rap da década atual revivem, desconstroem e ressignificam suas expectativas depois de tudo o que aconteceu. Reproduzem sua juventude em beats e letras intimistas, extravagantes, ou algo entre os dois. Seguem os passos de Q-Tip, Busta Rhymes, 2Pac, Nas e vários outros que fizeram de sua voz uma imposição sintomática e cultural. Eis a força do gênero e de toda a esfera pulsante e imediata que caracteriza o hip-hop. A revolução não televisionada que ainda ecoa em almas e corações e impulsionam a inclusão em um mundo fragmentado.

A indústria fonográfica sabe velar esse sonho como ninguém. É como um leviatã microcósmico que se retroalimenta de rótulos e certificados amalgamáticos. Talento é só um detalhe e disso todo mundo sabe e finge que tá tudo bem. Os poderosos chefões não estampam capas de álbuns. Na verdade, ficam ali, bem no final do encarte, desejando o mínimo de exposição possível. Me vêm à cabeça Ahmet Ertegün, Brian Epstein, Berry Gordy, Tommy Mottola, L.A. Reid e mais uns nomes aleatórios aí – Harvey Weinstein… hum, esse não. Enfim, a noção de que a indústria fonográfica sabe(ria) domar seus monstros, sendo ela mesma o maior deles, nunca foi passageira. Não só artistas, como pequenas gravadoras e também movimentos culturais inteiros submetem-se aos seus esquemas, perdendo parte de suas essências em troca de posições mais altas na Billboard ou mais uma vitrolinha dourada na estante. A seleção natural desse meio já varreu uma população de anônimos que garantiriam mais umas 30 temporadas do The Voice.

Adaptações são necessárias e se infiltrar nesses mecanismos se tornou o objetivo de vida de Shawn Corey Carter, o tal do Jay-Z. Sua habilidade com negócios é perceptível desde os tempos em que precisava vender crack para bancar mãe e irmãos nas habitações Marcy, no coração do Brooklyn. O talento com ritmos e rimas veio de brinde. A capacidade de se locomover de um ponto a outro na cena local, estabelecendo vínculos com gente importante, o garantiu visibilidade em tempo recorde. Jay era empresário antes mesmo de lançar seu primeiro álbum em 1996, o saudosista Reasonable Doubt. Emplacando sucessivos hits, participações estratégicas na música dos outros e com uma Beyoncé para lhe chamar de Clyde, seu nome se tornou um lugar-comum para a indústria. Na virada do milênio, se identificava tanto como um interlocutor das ruas como uma vitrine de Wall Street. Era o cara certo para fazer contato e alçar para a fama. Se um pequeno produtor chamava a sua atenção, era questão de tempo para que este se tornasse lugar-comum na indústria também. Foi o que aconteceu com Timbaland, Jermaine Dupri e dois sujeitos de Chicago: No I.D. e um tímido Kanye Omari West.

Não que seja o foco desse texto, mas, antes de 2004, é necessário voltar para 2001. Além de ter sido o marco zero para políticas armamentistas sem precedentes, foi também o ano em que nasceu The Blueprint. É aqui que a semente para o The College Dropout germina. As digitais de Kanye se encontram bastante presentes nas cinco músicas que produziu, como a incisiva Takeover ou a comovente Ain’t No Love (Heart of the City). Não requer ouvido absoluto para perceber suas assinaturas onipresentes: os samples de soul acelerados, as influências do gospel e um flerte inconsciente pelo rock psicodélico. Enquanto uma década se iniciava de maneira trágica, uma faísca de revolução acendia nos estúdios da Roc-A-Fella.

Representantes de diversas companhias estavam relutantes em liberar espaço para Kanye West se lançar como um rapper e gravar seu primeiro álbum. Havia um pressentimento de que sua postura inversa ao perfil gangsta consumista exigido pela indústria o prejudicaria em suas vendas e isso sobraria para as gravadoras. Até mesmo Jay-Z o considerava um produtor nato e não o visualizava plenamente com o microfone na mão. Um co-fundador da Roc-A-Fella, Damon Dash, foi quem deu a cartada final, garantindo o orçamento e a equipe necessária para Kanye elaborar a sua sonhada apresentação para o mundo.

Em outubro de 2002, enquanto dirigia de volta após sessões num estúdio da California, Kanye West caiu no sono e se acidentou. O episódio quase fatal teve como resultado uma mandíbula fraturada, uma cirurgia de reconstituição facial e uma nova canção registrada: Through the Wire. Nela, o (agora) rapper relata suas vivências de modo lúcido e literal. Imerso em delírios de grandeza oriundos de uma experiência de quase-morte, West desenhava suas primeiras abordagens não só para um álbum, como para toda uma discografia.

Juntando rabiscos da adolescência e refinadas técnicas de produção, Kanye buscou centralizar anseios e devaneios em um trabalho que apresentasse temas tão diversos como fé, família, amizade, materialismo, escapismo e exclusão. São algumas das ideias que perambulavam a sua mente desde que seus pais se divorciaram quando tinha três anos ou enquanto escutava histórias de seu tio como membro dos Panteras Negras. West cresceu em um ambiente de classe média, com mãe acadêmica e principal mentora (até uma trágica morte em 2007). Gostava de pintar, escrever poemas e insistia para ser levado a um estúdio de gravação. Nessas pequenas aventuras artísticas, cruzou caminhos com o já citado No I.D. e o aspirante Common. Aprendeu a arte do sample e suas aplicações nos diferentes estilos de hip hop – do boom bap ao gangsta rap. Incapaz de decodificar seus rótulos, Kanye entrou para alguns cursos superiores de pintura e literatura. Pouco tempo depois, descobriu que seu lugar era mesmo num estúdio de gravação.

As faixas de The College Dropout são temporalmente espaçadas. Rascunhos de meados dos anos 90 ganhavam uma repaginada e se juntavam às canções feitas em 15 minutos numa madrugada produtiva. Percebe-se também algumas músicas “intrusas”, como Never Let Me Down, inicialmente planejada para o The Blueprint de Jay-Z. Trechos de mixtapes pipocam ao longo da tracklist. Mesmo assim, é um álbum consistente devido não só à participação de Kanye como produtor em todas as faixas (consolidando mais ainda sua identidade sonora), como também na imposição de um estilo que abandona paradigmas tóxicos do rap comercial americano. O título, inclusive, não poderia ser mais apropriado ao refletir tanto um período da vida do autor (que literalmente se livrou da faculdade) como também ao evidenciar que instituições engessadas e comportamentos padronizados são insuficientes para entender como funciona o mundo – e como transformá-lo.

Embasado em uma narrativa ligeiramente linear, reproduzindo cenários vividos em escolas ao incluir broncas de um diretor (voz de DeRay Davis imitando Bernie Mac), o álbum é surpreendentemente convidativo. Passa anos-luz de ser um Yeezus e encontra mais semelhança com algo da Lauryn Hill – inspiração direta na exuberante All Falls Down, condenando o materialismo no hip hop em pleno auge de Nelly e 50 Cent. O foco é em abordagens mais intimistas. Algumas apostavam no sarcasmo (We Don’t Care, que coloca um coral infantil para cantar sobre expectativa de vida no tráfico) ou no ceticismo absoluto (Spaceship, que reúne os velhos amigos GLC e Consequence numa curiosa batida em ¾). É um fluxo irresistível.

Quando chegamos em Jesus Walks, sentimos pouco espaço para a leveza de outrora. Estamos diante de uma das peças mais controversas daquele tempo. Uma música invariavelmente mainstream falando sobre cristianismo e se colocando no lugar de figuras marginais da sociedade pedindo socorros do além. Não seria exagero que, a partir daqui, Kanye começou a expor traços de uma personalidade cada vez mais confusa e desamparada. Os versos são fortes. A entrega é forte. É uma tremenda música para entender como começou o século XXI e como se viveu desde então. Os arrepios são bem-vindos. Ou não.

Por pouco que o álbum inteirinho não fica na sombra de Jesus Walks, indicada à Canção do Ano no Grammy – bem mais relevante há 15 anos. O trabalho como um todo foi bastante reconhecido também, chegando a liderar várias listas de fim de ano e cimentando os novos passos que o rapper daria em sua carreira. Rendeu uma trilogia de álbuns com tema acadêmico (precedendo Late Registration, de 2005, e Graduation, de 2007) ditando toda uma era não só para o autor, como também para os fãs de rap em geral. Percebia-se uma soltura de amarras saudável para o gênero, algo que só acontece quando gente grande surge no pedaço. Outro reflexo das boas energias que cercavam Kanye West naquele momento se traduz na quantidade de nomes convidados de destaque: os iniciantes John Legend, Jamie Foxx, Twista e Freeway, além de cortesias de Ludacris, Mos Def, Talib Kweli, entre outros. É um retrato fiel de um momento incerto para a cultura pop e versos como “Como eu pude deixar suas palavras me afetarem / Eles dizem que o Hip-Hop está morto, eu estou aqui para ressucita-lo” quase que nos deixam reviver esse estranho período.

Não consigo escolher um momento favorito em The College Dropout. Adoro o exercício de estilo em Slow Jamz e a dose reforçada de ironia em The New Workout Plan. Ainda que tenha a consistência da produção de Kanye e seus aliados, trata de uma diversidade de assuntos e se apoia em expectativas, frustrações e ressignificações para se manter como uma peça incansável, progressiva e envolvente. Dependendo da versão que você escutar (a edição em vinil, por exemplo, apresenta boas alterações na tracklist), vai encontrar no final uma quadra poderosa encabeçada por Two Words, Through the Wire, Family Business e Last Call. São obras completas que encontram um fim em si mesmo, porém dentro do contexto se tornam ainda maiores ao querer discutir contornos reais e tangíveis da memória e da personalidade do autor – com as quais nos identificamos facilmente. É o momento certo para se indignar, se culpar, se emocionar ou questionar se já não passou por situações parecidas.

O sucesso de Kanye West não deu trégua. Não há hoje uma pessoa antenada na cultura pop que não saiba da existência desse sujeito. Poderíamos discutir aqui suas declarações polêmicas, como o VMA de 2009 ou a inacreditável ponderação da escravidão africana como uma “escolha”. A verdade é que não há muito que falar. Ele pouco se lixa. A verdade é que seus maneirismos, seu ego e sua persona são eclipses de uma sensibilidade artística outrora saudável e proativa. É como se Kanye levasse o conceito de “morte do autor” ao pé da letra. Seus álbuns falam por si… Ano passado, mesmo inundado de controvérsias, trabalhou no projeto KIDS SEE GHOSTS (ao lado de seu pupilo Kid Cudi) e conquistou novamente o reconhecimento da crítica, do público e da imprensa – sem indicações ao Grammy desta vez. Sonoramente, tem pouco a ver com The College Dropout, mas é gratificante saber como isso tudo começou e como as narrações de uma mente conturbada ainda constituem sua principal finalidade criativa.

Quando estamos sozinhos, nos percebemos vivos. Nos encontramos diante de pensamentos que trafegam nossa rede neural e se dissipam em frações de segundos. Talvez nem a milionésima parte deles alcancem a materialização. Se expressar por meio da arte é uma oportunidade de enclausurá-los e temperá-los com as adversidades do tempo. É bonito apreciar os clássicos que a indústria fonográfica quis que a gente adorasse. Hoje, mais do que nunca, os clássicos são representações de mundos fragmentados. Nada impede que você faça a sua parte também. Escolha suas melhores lembranças, acelere o tom e descubra como samplear. Essa percepção é o que oxigena exposições criativas individuais em 2019. Parece estranho, mas há 15 anos era diferente. Estávamos em uma guerra com nossas próprias percepções daquilo que somos e do queremos ser. Havia, nos subúrbios de Chicago, um soldado lutando por emancipação; pela livre expressão de uma identidade cultural personalizada. Pode ter fugido do colégio, mas seu aprendizado não foi em vão.


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