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À maneira dos filmes de Richard Linklater, o documentário Kevin consiste num manifesto de submissão às forças da natureza que se desdobram em acontecimentos. Aceitar a passagem do tempo é, muitas vezes, doloroso, e requer o constante exercício do desapego e da reinvenção. Não há tentação maior do que se sentir no direito de controlar a ordem das coisas; confinar experiências e memórias numa caixinha para querer revisitá-las sempre do mesmo jeito, achando que sempre seremos o mesmo e teremos as mesmas percepções.

Na forma de um exercício intimista que toca em delicados detalhes de sua vida, sua família e suas relações, o longa de Joana Oliveira oferece uma poderosa oportunidade de reflexão. Após sofrer importantes perdas na sua vida, Joana decide viajar para Uganda para reencontrar Kevin, sua amiga de faculdade, com quem havia estudado junto na Alemanha há 20 anos atrás. Durante o período em que ficam juntas, as duas revivem os momentos do passado a partir de fotos e relatos, enquanto se conhecem novamente em relação ao momento presente e também se preparam para o futuro.

Concebido nos moldes do realismo fechado, sem interlocução explícita com o espectador, o documentário apresenta imagens da vida de Joana como exercícios de encenação. Uma vez imersos na obra, podemos nos pegar pensando em vários momentos que estamos assistindo a uma peça de ficção, com a sensação de acompanhar diálogos e reações previamente planejadas ou recriação de momentos que talvez nunca tenham acontecido. A captação do som e os posicionamentos de câmera são trabalhados como tomadas cuidadosas que garantem uma apreensão subjetiva das cenas.

A partir de decisões formais, Joana desenvolve uma tese importante, trabalhada também ao longo da decupagem das conversas que tem com Kevin. A crescente sensação de instabilidade, principalmente quando esta vem acompanhada pelo envelhecimento, é um tema fundamental para o funcionamento do filme.

Sem abraçar uma visão niilista, mas buscando fugir do idealismo inocente (“há mais ONGs do que causas por aqui”), Joana consegue garantir um senso de unidade ao seu projeto quando trabalha uma noção de desenvolvimento de personagem, tanto para si quanto para a amiga, ao longo dos 82 minutos de duração.

Essa noção pouco tem a ver com o que acontece na tela. Ela permeia todo o processo de pré e pós produção e tem sua renovação garantida pelos anos subsequentes ao projeto. Joana se submete a um processo de amadurecimento e convida o espectador se apropriar dos mesmos questionamentos. É uma troca bonita que sentimos exatamente quando nos propomos a um reencontro e este se revela imprevisível, justamente pela crença traiçoeira de que cada ser é imutável.

O aprendizado de Joana não é se deixar levar inteiramente pelo fluxo da correnteza que move sua vida. Tampouco confinar memórias e relações sempre dentro da mesma caixinha. Enquanto habitamos o mesmo corpo por tempo indeterminado, precisamos saber quando é hora de sofrer as podas e trocar de vaso, para assim então voltar a estabelecer raízes e garantir a produção de novos frutos.


MOSTRA TIRADENTES

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