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"Uma Noite em Miami" faz um exercício de revisitação histórica teatralizada de um encontro potente entre quatro figuras humanas e míticas.

“Uma Noite em Miami…” faz um exercício de revisitação histórica teatralizada de um encontro potente entre quatro figuras humanas e míticas.


ÉÉ fato que a literatura e o teatro são duas formas de arte que mais inspiraram adaptações para as telonas ao longo dos anos. Assim, é justo pontuar que no caso de obras teatrais, o maior desafio reside na adequação da força do texto dramatúrgico para um impacto imagético, majoritariamente audiovisual. Curiosamente, este é tanto o maior desafio quanto a principal dificuldade de Regina King na direção de Uma Noite em Miami…, disponível no catálogo da Prime Video.

King faz aqui um interessante exercício de revisitação histórica de um encontro entre figuras míticas da cultura negra estadunidense pelo viés da desconstrução de suas personas míticas e de aprofundamento de seus anseios e das questões intimas de cada um.

Adaptando a peça homônima de Kemp Powers, Uma Noite em Miami… nos apresenta a este suposto encontro em um pacato quarto de hotel de estrada que recebeu quatro homens negros, grandes referências de suas áreas: Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), Cassius Clay (Eli Goore), Jim Brown (Aldis Hodge) e Sam Cooke (Leslie Odom Jr.). A partir da reunião, que se desenrola logo após alguns minutos de apresentação de cada um, acompanhamos então uma noite de conversas a respeito de seus respectivos papeis e relevância dentro do movimento negro dos anos 60.

O mais interessante no trabalho de King é como a diretora desnuda, gradativamente, cada uma daquelas figuras imponentes e emblemáticas, distanciando-se de qualquer retrato mitológico ou abrilhantado deles. Pelo contrário: a cineasta se ocupa em dar tempo e espaço para que as questões de cada um, enquanto homens negros que conquistaram prestígio em diferentes áreas de atuação (seja no esporte, na arte ou na política) venha à tona ao longo da noite, sempre mediadas pelas intervenções de um Malcolm X que incentiva os três amigos a tomarem parte no movimento de forma mais ativa.

Nesta lógica, faz sentido a escolha das ambientações destes encontros não só pela fuga para espaços de segurança e intimismo – afinal, eles são figuras públicas procuradas – como no quarto em que a maior parte da narrativa se desenrola ou no terraço do hotel.

Há um senso de liberdade que permeia toda a obra, seja nessa relação de encaixe com os espaços ou na busca por uma emancipação em suas próprias questões e realidades (Cassius Klay tem dúvidas quanto sua relação com o Islã; Sam Cooke não se encaixa completamente no tipo de música que produz e nos espaços em que performa; Jim Brown deseja abdicar de seu sucesso na NFL para se dedicara a carreira de ator; e Malcolm X, obviamente, se apresenta como o ativista símbolo do movimento).

De fato, a dramaturgia de Uma Noite em Miami… é forte e impactante, não só nesta dimensão íntima quanto também no viés político de posicionamentos claros e representações relevantes. Falta, no entanto, arrojo na encenação para abarcar a eloquência do que é dito e potencializa-lo por meio de um impacto essencialmente visual.

Com uma direção que se faz pouco presente em movimentos de câmera compassados e contemplativos, Regina King denota essa atmosfera de observação por uma dinâmica de desconstrução das figuras emblemáticas se afastando de um retrato que buscasse uma fabulação histórica dentro do exercício de revisitação – algo como Tarantino faz em Era uma Vez em… Hollywood.

Desta forma, é justo que King encerre seu longa sem reimaginar a história e os acontecimentos consequentes daquele encontro. Fica claro, então, que Uma Noite em Miami… é mesmo um exercício de documentação – mesmo que hipotético – do que foi o encontro entre quatro figuras tão relevantes e marcantes para a cultura estadunidense. Um exercício potente que apenas o cinema possibilita, se realizado comprometido com o seu impacto audiovisual.

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