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Dizer que Um Corpo que Cai é um filme a frente de seu tempo não seria injustiça alguma. A fraca recepção entre a crítica nos Estados Unidos e a bilheteria baixa para uma obra de Alfred Hitchcock, que já havia conquistado um certo prestígio, são indicadores de que as inovações técnicas e o esmero do diretor para trabalhar a linguagem neste filme eram mais elaboradas do que o mundo conseguia processar. O fato é que Um Corpo Que Cai foi ressignificado e revisto com o passar do tempo, sendo apontado não só como um dos melhores filmes de Hitchcock, mas como um dos maiores da história do Cinema.

Se traçarmos uma comparação, por mais arbitrário que isto possa ser, com outros dois dos mais cultuados filmes do diretor – Janela Indiscreta (1954) e Psicose (1960) – Um Corpo Que Cai salta ao olhar por ser mais singular graças a pessoalidade com que ele trata as características que marcam sua identidade como realizador. Neste sentido, o longa é também uma investida experimental de Hitchcock que usa de inovações técnicas e novas abordagens com a linguagem para perturbar o espectador e levá-lo a um transe sensorial pautado no impacto imagético.

Logo na abertura somos apresentados a essa proposta de inquietação sensorial. Os créditos inicias criados pelo designer gráfico Saul Bass recriam a sensação incômoda de vertigem em um jogo magistral de sobreposição de imagens e elipses que confundem o olhar humano para criar uma sensação de desconforto. Daí, passamos a acompanhar o policial Scottie Ferguson (James Stewart), que durante uma perseguição acaba causando a morte de um colega devido a sua inédita descoberta de medo de altura. Passado algum tempo, Scottie é procurado por um interessado em contrata-lo como detetive para investigar a sua esposa, Madeleine Elster (Kim Novak), a qual o marido acredita estar possuída por um espírito feminino e que, por isso, estaria cometendo adultério. Ao pegar o caso, Scottie adentra em uma interminável espiral de insanidade que o faz confrontar sentimentos afetivos íntimos, seus desejos e projeções que os alimentam.

Há um jogo de manipulação de sensações, por meio das subversões narrativas e das diversas nuances que os personagens e situações as quais estão cometidos acabam revelando durante a projeção. É interessante como Hitchcock opta por uma constante subversão de caminhos, tanto em prol de um suspense causado pelo desarme do espectador atento à trama, quanto na abordagem um pouco experimental da linguagem a serviço de uma provocação sensorial. Toda essa articulação entre uma narrativa de investigação e mistério com um estímulo visual e sonoro provocante, inserem o espectador na cabeça de Scottie e, então, cria-se um jogo de possibilidades interpretativas quanto os sentimentos envoltos a projeção: a obsessão, a paixão, o delírio e o medo.

A atuação de James Stewart, que já havia trabalhado outras vezes com o diretor, contribui para a criação de um protagonista dúbio e que, assim como o espectador, passa a se questionar e a carregar um sentimento de culpa e perda profundos que transformam Scottie em um dos personagens mais trágicos do diretor. Por outro lado, Kim Novak adiciona mais camadas a todo jogo de subversão e percepção de Um Corpo Que Cai, em uma atuação que varia de um caráter vulnerável e quase que inexpressivo para uma presença forte, sensual e inquietante. A atriz tem muito mérito em conseguir criar com profundidade e realismo as diferenças necessárias para um dos principais pontos da trama.

Mais do que um trabalho magistral na condução rítmica e narrativa, Hitchcock utiliza de seu olhar detalhista, de sua veia estética e da proposta da experimentação, para garantir uma beleza plástica cativante e a inquietação visual. Nada do que o diretor coloca em cena é gratuito: os cenários e figurinos fazem parte do jogo de cores que traduz imageticamente o transe psicológico de cada personagem em determinadas passagens do longa, ao mesmo tempo que a trilha sonora de Bernard Herrmann corrobora para que sequências cruciais tenham seus sentimentos de obsessão, paixão, fascínio e desespero, tenham uma forte relação catártica com o espectador.

Ao falar da veia experimental, é necessário apontar a genial criação do contra zoom, técnica que combina o movimento da câmera para frente com um zoom para trás para dar a impressão de deformação e alongamento do espaço, que aqui é utilizada para tornar cinematográfico a sensação incomoda provocada pela vertigem.Tal inovação, por mais interessante que seja, é “apenas mais uma” das investidas experimentas e técnicas que o gênio Alfred Hitchcock propôs em seus anos de carreira.

Sobretudo, Um Corpo que Cai traz essa forte pessoalidade na filmografia de Hitchcock porque, em certa medida, é o filme mais essencialmente “hitchcockiano”: a combinação do que lhe inspira no cinema com um forte traço autoral que articula a linguagem em prol de um impacto imagético sensorial e carregado dos sentimentos que mais parecem lhe remeter á própria Sétima Arte: a paixão e a obsessão como dois lados de uma moeda.


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