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Em Trama Fantasma, Paul Thomas Anderson leva a tela de cinema os anseios, desejos e conflitos presentes em qualquer processo artístico.

O que define a arte? Como se define um artista? Confrontando ideias, desejos e sensações, Trama Fantasma (2018) representa a obra de um indivíduo como efeito dos próprios pensamentos, e como o próprio apego pelo ofício e suas criações ameaça privá-lo de um olhar mais amplo sobre o mundo.

Dirigido e escrito direto para o cinema por Paul Thomas Anderson, o filme nos apresenta Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), em seu hipotético papel derradeiro como um estilista de pulsos firmes e poucas aberturas, mas com uma vocação ímpar para projetar vestidos. Em um passeio esporádico, conhece a garçonete Alma (Vicky Krieps) e a corteja com sucesso, levando-a para morar em sua casa e servir de musa. Uma estranha relação começa a se desenvolver e pouco podemos prever a respeito do destino de ambos.

Sob a luz de chamas, somos impulsionados para a trama com um depoimento introdutório de Alma. Ela nos descreve Woodcock como um homem exigente e eis que a cena seguinte exibe o estilista tomando alguns cuidados com a aparência e se arrumando para trabalhar. Sua vaidade transcende o próprio corpo. A maneira como mantém seu ofício, somando-se ao perfeccionismo performático na hora de executar coisas rotineiras (tomar café da manhã, abastecer o carro) acabam compondo os traços que marcam a personalidade metódica do britânico.

Durante o primeiro ato, temos vários takes com o rosto de Daniel Day-Lewis filmado em contraluz; um que pessoalmente me marcou acontece durante o primeiro encontro com Alma, no restaurante. Mais tarde, descobrimos suas amarguras quando o homem relata memórias sobre a falecida mãe e o vestido que ela usava. Elementos que contrastam com o retrato de idealização almejado pelo estilista, catalisando a sensibilidade do espectador.

A tensão sexual sugerida a cada medida que Woodcock tira de Alma não só conduz a narrativa, como dá um panorama para construirmos nossas próprias leituras sobre a vida de ambos os personagens e quais rumos serão tomados a partir dali. No caso de Alma, não temos contato com nenhum tipo de história prévia; sua posição no filme não difere muito da de um manequim na vitrine. Misturando Síndrome de Estocolmo com divertidas subversões do mito de Pigmalião, elegância é o que não falta nas nuances que o roteirista confere ao casal principal.

Suas incursões na direção de fotografia até funcionam, mas não dotam da inspiração exigida pela narrativa. Tons frios e quentes se mesclam sem a devida sutileza e me pareceu comum estranhar as mesmas partes da casa em momentos diferentes (sem que fosse apresentada uma necessidade convincente). Em compensação, três departamentos brilham aqui com muita força: design de produção (Mark Tildesley), figurino (Mark Bridges) e música (Jonny Greenwood).

O design de produção é talvez um dos primeiros aspectos que reparamos abertamente no filme. Frequentemente percebemos o uso de roupas incompletas, associado aos planos-detalhe envolvendo linhas e agulhas. Igualmente eficiente são os móveis, pisos e paredes mergulhados no branco, destacando o colorido estampado pelas vestes.

A aplicação das cores no filme chama atenção. Mais uma vez, os primeiros encontros do casal protagonista nos dão pistas. Enquanto opta por sabores de geleias de frutas vermelhas, Woodcock não esconde preferência pelo luto, materializado em um adereço especial incorporado ao terno preto que usa constantemente. Ao longo da projeção, vemos o personagem homeopaticamente adotando cores mais leves, como lacunas gradualmente preenchidas pela musa em seu coração.

O sofrimento contido de Woodcock o atrapalha de viver com plenitude. O corpo do estilista carece não só de vigor, como de natureza e sinceridade. Sua figura pode ser facilmente confundida como a própria mansão em que vive, que, mesmo abrigando rituais repletos de pontualidade e etiqueta, não deixa de permanecer como um efêmero pontinho branco rodeado pelo dossel de árvores verdes e robustas. Precisamente, sua irmã Cyril (Lesley Manville) se materializa para “protegê-lo” de um mundo hostil e desconhecido, repleto de surpresas e intoxicações.

Jonny Greenwood, mais conhecido pelo seu trabalho como guitarrista principal do Radiohead, exibe aqui um tato até então pouco conhecido para composições que flertam com o barroco (num diálogo com o luto) e o impressionismo (referência às sensibilizações que faltam em Woodcock?). Dona absoluta de grande parte das emoções geradas durante o filme, a música já aparece radiante, ampliando os contornos do pomposo estilista. A falta da mesma gera boa dose de tensão em um jantar especial, quando o filme parece rejeitar o som da primeira nota que ousar ondulações. Aos poucos, um espectro de novas sensações vai ganhando espaço. Semelhante aos concertos de Vivaldi, Greenwood abusa de pianos e quartetos para instituir, de forma extra diegética, o sentido da vida que talvez mais falta à Woodcock.

Por mais brilhante que seja, um artista também sofre de bloqueios e recaídas. É lindo ver como sua obra reflete suas tragédias, mas não caracteriza o mínimo sinal de ambição. Perdido e estagnado, o personagem de Daniel Day-Lewis é um símbolo do homem que, imerso no passado e aprisionado pela técnica, ignora o aflorar de novos sabores, timbres e relações. Mesmo com a própria definição de arte ou do papel do artista dependendo de múltiplas percepções, é na alma que talvez possa residir um necessário denominador comum.


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