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“This Is Paris”: a façada

"This Is Paris" apresenta Paris Hilton sob uma íntima e interessante perspectiva, em um documentário que mostra a pessoa por trás da persona.

“This Is Paris” apresenta Paris Hilton sob uma íntima e interessante perspectiva, em um documentário que desconstrói a persona criada pela celebridade e explica a necessidade de sua criação.


Nota do Colab: além de conter spoilers, este texto traz conteúdo sensível referente a abuso e pode servir de gatilho. Tome cuidado.

AA influenciadora original. É assim que a mídia apresenta o legado de Paris Hilton. A empresária, que traz no currículo trabalhos como atriz, cantora, modelo e DJ, começou sua carreira sendo famosa por nada além de ser a neta do criador do conglomerado mundial de hotéis Hilton. Não que ser milionária seja pouca coisa, mas Paris virou uma obsessão mundial por simplesmente existir – “famosa por ser famosa“.

Ao longo da primeira década o século 21, a herdeira foi um dos maiores frenesis da cultura pop, saindo da singela página do Page Six (uma espécie de revista Caras, mas mais alta-sociedade e menos celebridades) para as capas de todos os jornais, revistas e tabloides do globo. Impulsionada ainda mais pelo vazamento de um vídeo de sexo caseiro, Paris estrelou seu próprio reality show, lançou seu primeiro livro mais vendido e estreou como atriz e cantora.

Com o frenesi em baixa, mas ainda chamando atenção por onde passava, a segunda década dos anos 2000 foi marcada pelo início de uma carreira bem sucedida de DJ, além de uma lucrativa vida como empresária de sua própria marca e produtos. Enquanto a revista estadunidense Time colocou-a como a DJ mais bem paga do mundo em 2014, Hilton alcançou marcas grandiosas com seus empreendimentos pessoais. Sua linha de perfumes já gerou uma receita superior a US$ 3 bilhões, sendo apenas uma das 19 linhas de produtos que levam o seu nome. Com 50 lojas Paris Hilton ao redor do mundo, Paris ganha, sozinha, mais de 10 milhões de dólares por ano com seus produtos, além de um cachê de US$ 300 milhões por aparições em eventos.

Mas engana-se aqueles que acham que isso é foco de This Is Paris, o mais recente documentário de Paris Hilton. A produção Youtube Originals de quase 2h de duração, lançada este mês gratuitamente no Youtube (e com legendas em português), busca esquecer por um instante a persona, focando principalmente na pessoa por trás da personagem que o mundo já transformou em meme, figurinhas de mensageiros, gifs e frases de efeito.

Essa é A Paris

Pôster do doc

Diferente do que a mídia mundial tem tragicamente colocado como foco da cobertura do documentário, a parte mais interessada de This Is Paris está longe de ser a diferença entre a voz da Paris-personagem e da Paris-real. Sim, este detalhe é um baque inicial. O mundo está acostumado com a voz meio aguda, sempre animada, superficial de Paris Hilton. De repente ouvir uma voz mais rouca e um pouco mais profunda, além de um posicionamento corporal mais contido e elegante, é, inicialmente, paralisante. Mas, no final, é apenas isso: momentaneamente paralisante.

Superar de uma vez esse pequeno detalhe é muito importante para conseguir dar o necessário foco para o que o documentário busca trazer para os fãs e o público em geral. Há um motivo para a Paris-personagem existir, sendo uma das maiores e mais duráveis façadas já criadas no mundo contemporâneo.

Porém, diferente da forma como o documentário contrói o anúncio dos acontecimentos, Paris não foi vítima de abuso sexual. E talvez esse seja o maior “problema” da produção.

Quebrando o Silêncio

This Is Paris estabelece todo um mistério em torno do que aconteceu com Hilton no passado, trazendo reconstruções animadas de seus pesadelos que parecem caminhar para o anúncio de estupro coletivo. É apenas na segunda metade do doc que o público tem todas as informações e percebe que, bem, não foi isso. Paris, na verdade, foi vítima de abusos físicos e psicológicos em diferentes internatos de “modificação de comportamento” (lugares destinados a “adolescentes problemáticos” com a finalidade de “corrigi-los” e torná-los indivíduos morais perante a sociedade), iniciados por um ritual que ela categoriza como uma espécie de sequestro assistido – daí os os pesadelos.

É verdade que ambas as situações (estupro e abuso físico/psicológico) são igualmente trágicas e precisam ser combatidas. Mas ao fazer reconstruções tão gráficas dos pesadelos que atormentam Paris, que configuram a invasão noturna de dois homens em seu quarto que a amordaçam e mandam-na calar a boca, a ideia do estupro coletivo parece ser um resultado mais natural para a história que vem a seguir, diminuindo rapidamente o impacto da verdadeira revelação.

Mas se a construção narrativa de This Is Paris é problemática nesse sentido, o olhar íntimo em Paris Hilton triunfa em ilustrar o peso que tal acontecimento tem na vida das vítimas, através do recorte da sua. E embora ela viva dentro de um estilo de vida irrealístico no sentido macro, a história possui uma tangente bastante real.

PARIS E PAris

É interessante ter em mente que Paris tem, hoje, 39 anos. A história que a empresária conta aconteceu dos 15 aos 18 anos de sua vida, sendo a primeira vez que ela fala disso no âmbito público e até mesmo pessoal, com sua família. 20 anos marcam o momento em que ela tem a coragem de falar em voz alta o que sofreu e iniciar o seu processo de recuperação. 20 anos que encaixam perfeitamente dentro do tempo de vida que a Paris-personagem existe; essa persona que foi construída para se mostrar profundamente fútil, sem complexidade e sem talento, vivendo uma vida estupidamente rica e ignorante de tudo fora da sua bolha exuberante, enquanto faz pouco-caso de tudo, como a famosa camisa “Pare de ser pobre!“, e fala “Isso é quente!” em sua voz borbulhante.

Tendo passado por situações extremas como confinamento em solitária (sim, como nos presidiários), é natural entender o mecanismo que Paris Hilton usa para continuar sobrevivendo. Criar uma personagem que nada tem a ver com a sua personalidade real é a sua forma de lidar com algo que ela não tem nem coragem de falar sobre. Assim, não é difícil acreditar em falas como a de sua irmã, Nicky Hilton, que diz que Paris é uma das pessoas mais inteligentes que ela conhece. Narrativa que se engrossa quando suas antigas colegas de confinamento se dizem confusas com a Paris superficial e ignorante que viram no reality The Simple Life (2003-2007), já que elas presenciaram diversas vezes Hilton fazendo faxina e até mesmo dando mini-palestras de assuntos complexos, como Economia.

Nesse sentido, Hilton parece até mesmo ser uma versão moderna de Marilyn Monroe. A atriz da Era de Ouro de Hollywood usufruía da mesma personagem de “loira burra e superficial”, mas o catálogo de biografias sobre a sua vida mostram que ela era uma pessoa muito inteligente e tinha um gosto apurado para literatura, em uma biblioteca pessoal de mais de 400 títulos – o mito de seu Q.I. ser superior ao de Einstein é apenas isso: um mito.

VIDA DE Sequelas

Paralelo a desconstrução de sua personalidade, This Is Paris ataca também como as sequelas dos abusos minaram a sua capacidade de se relacionar com as pessoas, principalmente com homens. Constantemente desconfiada de sua capacidade de construir relacionamentos, Paris conta como sempre teve dificuldade em encontrar caras certos e adentrou muitos relacionamentos abusivos – inclusive, documentados na produção. Um deles acarretou sua fatídica fama mundial em 2003, com o lançamento ilegal do seu vídeo de sexo caseiro, gravado em 2001, quando ela tinha 19 anos e o então namorado, 33.

Hilton deixa claro que a ideia do vazamento nunca foi sua, além de achar grotesco o fato das pessoas acharem que foi tudo o resultado de sua sede insaciável de fama. E mais duro que isso, é o estresse que isso causa na família (a matriarca, Kathy Hilton, confessa que passou meses sem sair de casa, tendo sofrido o que parece ser depressão) e na própria Paris, constantemente atacada e tida como a grande arquiteta de tudo, sendo alvo de piadas e paródias nas redes de televisão e capas midiáticas de todo mundo.

Em uma campanha do #BreakCodeSilence, Paris denuncia o que a “escola” Provo Canyon “deu” à ela: problemas de confiança, medo, ansiedade, e abuso verbal, físico e emocional.

A realidade fica ainda mais trágica quando analisa-se o teor misógino e machista desse capítulo. Apesar de constantemente ter buscado por meios de monetizar sozinho em cima do vídeo, lançando-o em versão filme pornô (2004) e até mesmo processando a família Hilton por tentar impedir que o vídeo seja reproduzido na televisão, o tal namorado de Paris (que aqui fica sem nome para não dar palanque mesmo) nunca foi crucificado pelo vídeo, nem enquadrado como o arquiteto do vazamento em uma insaciável busca por fama.

Patricinha Não Mais

This Is Paris mostra, principalmente, como três anos modificaram inteiramente o rumo dos vinte anos posteriores, levando Paris Hilton a um estado de dormência que forçou o nascimento de uma necessidade de criar uma Paris que nunca existiu para além das câmeras. Este também é um espaço para a herdeira dar visibilidade à histórias parecidas com a dela, ainda tornando mainstream o movimento #BreakingCodeSilence (“Quebrando O Código do Silêncio“, em tradução livre), que busca erradicar todas as escolas de “modificação de comportamento”, altamente lucrativas graças a uma “cultura de adolescente problemáticos” instituídas por elas.

Ao longo de sua jornada de 1h45, além de uma versão estendida com 10 minutos a mais (este, para assinantes do Youtube Premium), o novo documentário de Paris quebra bastante com a imagem que o mundo tem da socialite cabeça-de-vento. This Is Paris é a prova de que Paris Hilton não só merece reconhecimento pela sua jornada, mas também tem completa consciência do mundo que ajudou a criar (com a indústria da superexposição, da “criação” das selfies, da institucionalização da loira superficial). E, para além disso, ela está disposta a usar do seu Frankenstein para dar luz ao que realmente importa – e, no processo, poder se curar e deixar Paris Hilton, Patricinha LTDA., para trás.

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