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Em Sem Amor, Andrey Zvyagintsev cria uma narrativa crua e dura sobre a herança melancolica que uma geração puxa de sua antecessora.

Sem Amor (2017) é, também, um filme sem esperança. É uma obra de arte fria, apática e repleta de questionamentos sobre os rumos que a sociedade moderna vem tomando. Estruturada sob uma narrativa bem linear, a película não mede esforços para proporcionar incômodo e incredulidade, sendo ao mesmo tempo bem sucedida em projetar sobre os espectadores uma atmosfera densa e terrivelmente real.

Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin) estão se divorciando. Entre eles, sempre havia o jovem Alexey (Matvey Novikov), um garoto de 12 anos fruto do problemático relacionamento. Após um período de ausência com seus respectivos amantes, os pais percebem que seu filho desapareceu e iniciam uma angustiante busca enquanto revisitam seus passados cheios de rancor e amargura.

O filme é dirigido por Andrey Zvyagintsev, responsável também por Leviathan (2014), Elena (2011) e O Retorno (2003). Queridinho de muitos festivais, Zvyagintsev detém uma filmografia repleta de discursos provocantes, alimentados especialmente (porém não exclusivamente) pela instabilidade social e política característica da Rússia e dos países vizinhos após Guerra Fria. O realizador não desperdiça oportunidades de provocar elementos do establishment local. Sem Amor é trabalhado em torno de críticas pouco ou nada sutis aos meios de comunicação, aos sistemas de produção e consumo e aos signos mais intrínsecos de segregação e da intolerância. Em essência, um filme que lamenta a miserável colheita que uma geração seguinte herda de uma sociedade insustentável e egoísta.

Iniciado por planos de uma floresta abandonada e coberta de neve, o filme já adota um clima de desconforto ao conferir importância ao abandono, ao desolamento e à escassez de vida que permeia o local. Não à toa, somos rapidamente distraídos pela família de patos atravessando a lagoa. São pitadas de ternura em um poço de calamidade que iremos sentir falta nos 120 minutos seguintes de projeção.

Uma escola convenientemente demarcada pela bandeira do país local toca o sinal. Crianças saem demonstrando o alívio típico de quem se prepara para voltar para casa. Uma delas, de casaco vermelho e semblante fechado, é acompanhada pela câmera até determinado ponto. De repente, paramos. Alexey está fora de quadro e nos perguntamos para onde ele foi. Ao melhor estilo Michael Haneke, renomado diretor austríaco por trás de A Fita Branca e Amor, a economia narrativa nos primeiros minutos sugere uma capacidade admirável de Zvyagintsev para estabelecer uma ambientação. Demonstração inegável de sua segurança no ofício, uma vez que o filme inteiro se sustentará a partir dessas construções iniciais.

Falando em construções, percebemos como elas literalmente moldam o teor incisivo da obra. Observamos seus personagens constantemente enclausurados pelas quatro paredes de um apartamento. As janelas sempre fechadas, sendo muitas delas adornadas por extensas cortinas que escondem a neve recorrente.

Em cenas externas, Zhenya não consegue parar de mexer no celular ou fumar. Boris é desses que dirige o carro com o rádio ligado nas alturas e se preocupa muito mais com suas aspirações profissionais do que com suas conexões afetivas, sejam elas do passado ou do presente. Quando ambos transam com seus respectivos parceiros, é uma ode ao prazer imediato, ao hedonismo egoico e midiático que o diretor estranhamente proporciona e a gente, estranhamente, aproveita.

Interpretada por Maryana Spivak, Zhenya é o tipo de pessoa escravizada pela atenção à tela do celular

Nada disso teria o mesmo efeito sem o trabalho calculista do diretor de fotografia Mikhail Krichman, colaborador habitual do diretor. Sua preferência pelos planos abertos consegue apequenar os personagens, ridicularizando a maneira como descontam suas ruínas pessoais na incapacidade parental. Uma breve cena apresenta o pai diante das janelas de um prédio abandonado. Em um dos sufocantes episódios de procura pelo garoto, o personagem surge enquadrado cercado pela indiferença que cultivou.

Realçada pela trilha sonora alarmante, a narrativa é organizada dentro um roteiro concreto (escrito pelo diretor em parceria com Oleg Negin, outro colaborador frequente) que sacrifica a criação de um ritmo mais dinâmico para impor ainda mais visceralidade e insegurança ao espectador. A solução parece ir e voltar; somos alimentados impiedosamente por hope spots ao longo da trama que nos fazem querer que tudo simplesmente se resolva para que tenhamos um pequeno alívio após a sessão.

Boris, interpretado por Aleksey Rozin (de perfil na foto), está mais preocupado com a ascensão de sua carreira profissional do que com as pessoas que estão ao seu redor, sejam elas amigos ou família

Quando aproximamos do fim, o terror politizado que se acumulara ao longo de duas horas se concretiza. Percebemo-nos lidando com uma mensagem para os tempos futuros. Uma carta recheada de rancor e amargura assinada pelas mãos de uma instituição que sabe de suas responsabilidades, mantém fardos e legados de tragédias, porém reluta em refletir e mudar de posição.


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