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"Roma" traz uma sensível apuração estética para contar uma bela história carregada de sentimento nostálgico da infância de Alfonso Cuáron, diretor do filme.

“Roma” traz uma sensível apuração estética para contar uma bela história carregada de sentimento nostálgico da infância de Alfonso Cuáron, diretor do filme.


QQuando o Festival de Cannes anunciou que a partir de 2018 os filmes de serviço de streaming estavam banidos da programação, a direção do evento provavelmente não sabia que estavam deixando de fora uma obra prima do cinema. Mesmo sem participar de Cannes, Roma (2018), de Alfonso Cuarón para a Netflix, conquistou o Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Veneza e foi ovacionado no Festival de Toronto. Mais do que isso, a película se tornou a primeira produção original da gigante do streaming a ser indicada a categoria de Melhor Filme do OSCARs. Tantos prêmios, indicações e elogios se devem majoritariamente ao trabalho de Cuarón, que entrega em Roma seu projeto mais pessoal e sensível.

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A pessoalidade com que o mexicano trata sua obra é sentida não só pelo o roteiro, assinado por ele, que parte de um olhar nostálgico e carregado de memórias para seu passado, visitando a década de 70 quando morava ainda criança no bairro Roma, na Cidade do México. Assim, o cineasta o escolhe contar a história de Cleo (Yalitza Aparicio), uma empregada doméstica de uma família composta por Antônio (Fernando Grediaga), Sofia (Marina de Tavira) e pelos três filhos Paco (Carlos Peralta), Pepe (Marco Graf) e Sofi (Daniela Demesa).

Responsável pelas tarefas da casa junto de sua amiga Adela (Nancy Garcia), a jovem passa quase que todo o tempo de seu dia a dia trabalhando, seja limpando a casa, preparando chás, cuidando das crianças ou pendurando roupas no varal. Assim, acompanhamos o desenvolvimento de uma dinâmica familiar conturbada, convidando-nos a perceber uma realidade social muito parecida com a do Brasil, em que Cleo é a funcionária que faz parte da família afetivamente, com uma devoção de carinho aos filhos do casal e funcionando como uma conexão – às vezes imperceptível para os familiares – entre eles mesmos.

Justamente por Roma ser seu projeto mais pessoal, fica claro a entrega de Cuarón que ainda assume a direção de fotografia e a montagem (juntamente de Adam Gough). Assim, direção e roteiro se combinam com maestria em uma bonita, sensível e tocante história de uma protagonista passiva em sua própria vida. O plano de abertura já nos prepara para um estado de contemplação da narrativa, que se assume ainda mais pela proposta estética arrojada e simbólica do diretor.

A escolha por um ritmo compassado construído pelo uso de uma câmera sempre distante dos atores, com planos panorâmicos lentos e um uso impressionante da profundidade de campo, dão a sensação de que Cleo é sim somente uma testemunha ocular do que acontece em sua vida, fadada a ser uma pequena peça de algo maior ao redor. Junto disso, a atuação retraída de Yalitza Aparicio transforma a protagonista na mulher dócil, amável, ingênua e introspectiva que acompanhamos sempre disposta aos seus chefes, devido a relação profissional, e as crianças, devido a relação afetiva, em uma dualidade que torna sua participação no núcleo familiar ainda mais interessante.

Dando sequência a sua proposta estética arrojada, Cuarón entrega sequências que são das mais belas de sua filmografia. A cena de abertura carrega uma simbologia com o mar, que é resgatada na cena da praia ao final do longa, em um dos momentos mais tocantes e bonitos (tanto no sentido emocional quanto no aspecto estético) do cinema em 2018.

A recriação do Massacre de Corpus Chrsti, em que centenas de estudantes foram assassinados enquanto protestavam contra o governo mexicano, tem um senso de desespero enervante, capturando a brutalidade nua e crua de forma arrebatadora. Em um dos poucos momentos em que quebra sua proposta contemplativa de Roma, o diretor filma a chegada do pai da família com seu carro luxuoso na afunilada garagem da casa, exigindo diversas manobras e um cuidado com o veículo impressionante. Assim, ele trabalha uma montagem mais ágil com cortes e planos detalhes, que funcionam para construir a personalidade daquele pai/marido por meio da linguagem do filme.

Assim, o cineasta entrega um filme carregado de sentimentos, mas que é livre de julgamentos e didatismos para o espectador, deixando espaço para que todas os discursos  levantados sejam construídos a partir das interpretações de cada um. Assim, vemos temáticas que envolvem a luta de classes e a submissão social existente na sociedade mexicana (é evidente o discurso na jornada de uma personagem pobre inserida em uma grande casa de classe média, o que novamente aproxima o filme da realidade brasileira), a representação das áreas suburbanas deterioradas, a recriação do Massacre de Corpus Christi, o comportamento agressivo e dominador do namorado de Cleo e o levantamento de questionamentos quanto a importância da mesma na criação e sustentação de uma família.

No fim das contas, Roma é uma oportunidade de Cuarón revisitar sua própria memória, reviver e resolver sentimentos pessoais profundos, ao mesmo tempo que homenageia uma importante figura materna e afetiva de sua vida, em um filme que com um esplendor técnico, uma sensibilidade tocante e muitas emoções, convida o espectador à compartilhar de um sentimento universal e muito particular: o amor. E não há nada mais humano que isso.


OSCARs 2019

Indicações: 10.

  • Melhor Filme
  • Melhor Atriz: Yalitza Aparicio
  • Melhor Atriz Coadjuvante: Marina de Tavira
  • Melhor Diretor: Alfonso Cuarón
  • Melhor Filme Estrangeiro
  • Melhor Roteiro Original: Alfonso Cuarón
  • Melhor Fotografia: Alfonso Cuarón
  • Melhor Mixagem de Som: Craig Henighan, José Antonio García, Skip Lievsay
  • Melhor Direção de Arte: Barbara Enriquez, Eugenio Caballero
  • Melhor Edição de Som: Sergio Diaz, Skip Lievsay

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