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10 anos de “Ratatouille”: ”Qualquer um pode cozinhar”

"Ratatouille" comemorou em 2017 seu aniversário de 10 anos, em um filme que mostra, também, o peso das críticas de restaurante/Chefs para a Culinária.

“Ratatouille” comemorou em 2017 seu aniversário de 10 anos, em um filme que mostra, também, o peso das críticas de restaurante/Chefs para a Culinária.


QQuem gosta de cozinhar sabe a força que as memórias de infância têm. Como na famosa Madeleine proustiana caída numa xícara de chá, provar um sabor que nos remete à infância aviva imediatamente as memórias estruturais, recriando a sensação de aconchego, de um mundo perdido onde nos sentíamos protegidos e acalentados.

As memórias de infância nunca vêm com um prato refinado e conceitual, é sempre a “confort food”, a “comida de alma” ou a como quiserem chamar. A cena que expressa o ápice suspense do ótimo filme Ratatouille (2007), quando o sisudo, temido e carrancudo crítico de gastronomia se converte e se transforma ao provar o prato de sua infância que dá título ao filme, expressa esta verdade, atestando o acerto dos roteiristas para retratar o universo de quem lida com comida.

Cena do filme “Ratatouille” (2007), onde o rato Remy é surpreendido pelo humano Linguini, no exato momento em que o pequeno roedor está arrumando o desastroso prato do aspirante à chef

A cena é memorável não só ao transportar o crítico de imediato para os sabores da sua infância, mas ao celebrar a dificuldade de se fazer um prato simples. É sabido no meio da gastronomia que assar corretamente um frango ou fazer um bom omelete é um teste para ser aceito em um restaurante. É necessário muita coragem e domínio da cozinha para fazer para um crítico de gastronomia uma rattatouile perfeita, bem apresentada e no ponto certo.

Feito no começo do boom de filmes, programas de TV, competições e rankings de revistas que colocaram a gastronomia no centro das atenções transformando Chefs em celebridades, o filme acerta muito em várias frentes, inclusive na ótima frase “qualquer um pode cozinhar”, mote do filme.

Bernard Loiseua
Bernard Loiseua

O longa foi baseado no suicídio do Chef Bernard Loiseua, que fora motivo pelo medo de perder sua terceira estrela do Guia Michelin em 2003, quando tinha 52 anos. A pressão no ambiente da cozinha profissional, especialmente na competitiva cozinha francesa submetida ao rigor extremo do Michelin (hoje com menos poder do que na época, depois da emergência da revista inglesa The Restaurant com sua lista dos 50 melhores do mundo), leva muitos Chefs à um stress imenso para manter suas estrelas conquistadas.

Perder uma estrela pode ser encarado como um vexame ou o começo da decadência, podendo afetar toda a estrutura que os Chefs estrelados tem, como dar seu nome à hotéis, linha de produtos licenciados e programas de TV. No filme, Loiseua é representado pelo bonachão e simpático Chef Auguste Gusteau, que morre pelo mesmo motivo – mas claro, não foi suicídio – e ressurge como um espírito que aconselha o rato Remy.

Contudo, hoje o poder do Guia Michelin foi transferido para a revista inglesa The Restaurant que publica anualmente a lista dos “50th Best” restaurantes do mundo. A repercussão midiática da publicação é enorme ao eleger o trabalho de Chefs em todos os continentes, dando visibilidade internacional a restaurantes de países que o Guia Michelin não alcança e premiando um novo tipo de conceito.

A revolução foi grande uma vez que na linha de premiação da revista a valorização está na cozinha regional, com foco em produtos orgânicos e em restaurantes que  aboliram a toalha de mesa, os jogos americanos e apresentam suas criações esculpidas como obras de arte montados em pratos de cerâmica.

O peso do poder da revista foi sentido quando Alain Ducasse, o Chef que melhor simboliza o sucesso no Guia Michelin começou a perder clientes e reformou seu restaurante no hotel Plaza Athené, em Paris, tirando as toalhas de mesa, as luvas dos garçons e a caneta Cartier para assinar a conta.  A The Restaurant consagrou Chefs como Virgilio Martinez do Peru, Vladimir Mukhin de Moscou, o brasileiro Alex Atala, René Redzepi em Copenhaguen e Zaiyu Hasegawa em Tóquio, que além da premiação ainda se tornaram temas de episódios do prestigiado Chef’s Table, da Netflix.

A série documental da Netflix, "Chef's Table", possui três temporadas e já foi indicado a quatro vezes ao Primetime Emmy Awards
A série documental da Netflix, “Chef’s Table”, possui três temporadas e já foi indicado a quatro vezes ao Primetime Emmy Awards

Se fosse produzido hoje, a proposta de Remmi seria fazer cozinha local defendendo os ingredientes orgânicos e o trabalho dos pequenos produtores. A consagração pela comida da infância será sempre pertinente, mas a equipe de trabalho do salão seria modernizada, a ambientação seria mais simples e descomplicada e o foco estaria em retornar ao ranking dos “50th Best”.

Ratatouille inovou na estrutura de um desenho animado que retrata o universo da gastronomia, colocando um rato como cozinheiro – o pior pavor para qualquer restaurante é ter um rato na cozinha –, brincando com o folclore de que em cozinha de restaurante só dá tipos esquisitos. O filme ainda traz uma das primeiras protagonistas femininas com caráter independente e feminista (ao passo que o meio da gastronomia ainda é machista) e mostra a diferença entre quem come qualquer coisa e quem busca se esmerar pela sutilização da experiência gastronômica transformando o rito vital e trivial de comer em obra de arte.


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