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"Paris is Burning" completa 30 anos, consolidando-se como um documentário de extrema importância para a história da comunidade LGBTQIAP+.

“Paris is Burning” completa 30 anos, consolidando-se como um documentário de extrema importância para a história da comunidade LGBTQIAP+.


Nota do Colab: este texto contém pequenos spoilers.

 

BBibliotecas são, historicamente, lugares de grande conhecimento. Na mesma linha estão os bailes de Vogue de Nova Iorque, espaços carregados de uma cultura histórica e que molda não só o seu próprio movimento, mas também a grande e diversa comunidade no qual está presente: o movimento LGBTQIAP+. E é dentro deste contexto que Paris Is Burning entra, em um documentário que explora esses espaços e leva ao público a rica identidade dos chamados ballrooms.

Lançado em 1990 e dirigido por Jennie Livingston, Paris Is Burning acompanha a vida de um grupo de indivíduos que frequentam o cenário de ballroom (bailes de Vogue) da cidade de Nova Iorque. Cada um desses indivíduos narram sua história e como elas se relacionam aos ballrooms, explicando o que esse bailes representam para a comunidade na qual estão inseridos. Assim, Livingston constrói a narrativa de um filme bastante didático, exemplificando termos e gírias dessa cultura e mostrando histórias de homens gays, mulheres trans e drag queens da Big Apple ao longo da década de 1980.

ONDE ASSISTIR
Paris Is Burning não se encontra disponível em serviços de streaming, infelizmente. Porém, o filme já entrou e saiu do catálogo da Netflix algumas vezes. Vale a pena ficar de olho.

 

Vogue em Família

Pôster internacional

Paris Is Burning é, antes de qualquer coisa, uma fonte de vida e cultura. É um conglomerado de histórias emocionantes de pessoas que vivem nas margens das margens, excluídos por serem, principalmente, gays e trans afro-americanos e latinos. Essas pessoas vivem vidas extremamente básicas, mas sonham com um futuro muito diferente e muito distante de suas realidades. Eles sonham ser executivos, modelos capas de revista, sonham ter uma família, casa do subúrbio, filhos correndo na rua ou no quintal. Eles sonham com aquilo que não podem ter, que a sociedade disse “não” por serem o que são.

Os bailes de Vogue, que nascem na Nova Iorque de 1920, se encaixam nesse cenário. Ballrooms são nada mais do que grandes eventos onde essas pessoas podem criar fantasias e, por alguma horas, exercer esses sonhos através de música, dança e roupas (das mais simples até as elaboradas). Os bailes configuram uma competição de Categorias, onde os envolvidos podem participar livremente, recebendo notas e, no final, concorrendo a troféus – e, mais importante, a possibilidade de construírem legados e famas dentro dessa subcultura. Essas categorias são diversas. Figura Masculina/Feminina (Male/Female Figure), Machão (Butch Queen), Afeminada (Femme Queen) e Drag Queen são apenas algumas das que existem, que ainda se subdividem em perspectivas técnicas que prezam pela Originalidade, o teor Realístico, a Beleza, o Talento, o andar de Passarela, a qualidade da Moda ou capacidade de Dança.

 

É na dança, inclusive, que esses bailes entregam seu principal produto de exportação. Vogue é um estilo de dança que nasce desse ambiente de embate, tão forte no cenário dos ballrooms. Vogue consiste em movimentos que imitam as poses de uma capa de revista de moda (como a famosa Vogue, por exemplo), incorporando-as em sequência e criando uma dança única e cheia de sentido e sentimento. A ideia inicial era um duelo entre pessoas que não se gostam, logo tornando-se extremamente popular – como é imortalizado pela música Vogue, de Madonna, lançada em 1990 – e uma importante categoria desses eventos, com pessoas se especializando nessa arte.

Ballrooms são ricos e elaborados, se estabelecendo na cidade norte-americana durante a década de 1980 como uma subcultura de grande poder e força da comunidade LGBTQIAP+. Paris Is Burning é a prova disso ao trazer seus personagens reais, como a notória drag queen Dorian Corey, que serve como uma espécie de narradora para essa representação midiática, ainda contando um pouco da diferença dos bailes atuais para os da época em que era jovem.

Dorian Corey

É através destes cenários que vemos a composição de Famílias, uma ideia que exemplifica algo comum no meio Queer: “nós escolhemos nossas próprias famílias”. Por serem o que são, em uma época de grande tabu, essas pessoas foram expulsas de casa ou acabaram fugindo por conta própria, entrando em contato com outras pessoas semelhantes e construindo suas próprias famílias. E assim como qualquer outra ligação do gênero, essas famílias, que são conhecidas como Casas, possuem figuras maternais conhecidas como a Mãe da Casa. Assim, conhecemos alguns dos principais da época, como Pepper LaBeija (Mãe da Casa LaBeija), Willi Ninja (Mãe da Casa Ninja), e Octavia St. Laurent (Mãe da Casa St. Laurent) – o sobrenome dessas pessoas são sempre o nome de suas respectivas Casas.

 

Cruel e Íntimo

Paris Is Burning é um estudo de caso. É um olhar bastante intimistas no centro dessas culturas e dessas realidades. É a possibilidade de entender porque o movimento LGBTQIAP+ é tão rico, tão colorido e tão cheio de vida: porque, por trás dele, há muita dor e muito sofrimento. Pessoas que vivem escondidas, ou vivem nas margens, sonhando por algo melhor, sonhando por uma vida em que elas não sejam desprezadas por serem quem são. O sonho de uma vida em que não sejam assassinadas gratuitamente.

Willi Ninja

O documentário de Livingston acompanha essas vidas por quase uma década, afim de trazer em pouco mais de uma hora um relatório conciso do que viria a ser um estudo de grande importância. Paris Is Burning é, hoje, preservado pelo Registro Nacional de Filmes dos Estados Unidos, encabeçado pela Biblioteca do Congresso pela sua “importância estética, cultural e histórica“. Ainda que o filme represente o fim da Era de Ouro dos bailes de Nova Iorque, é apenas o início de um estudo sobre sexualidade, transgeneridade, gênero e raça.

É também um recorte cruel e frio, ao trazer personagens como a doce Venus Xtravaganza, uma garota que se identifica como mulher aos 13 anos, fugindo de casa e posteriormente entrando para a Casa Xtravaganza. Assim como muitas de suas épocas, Venus precisa se prostituir ou servir de acompanhante não só para se sustentar, mas também poder bancar as extensas e caras cirurgias de redesignação sexual.

Venus é o retrato da inocência e ingenuidade, de alguém que está apenas no começo de sua vida – e que infelizmente chega no fim de forma rápida e cruel. Xtravaganza, que no início do documentário tem em torno de 17 anos, termina o longa sem aparecer, com sua Mãe, Angie Xtravaganza, narrando o seu trágico fim: na noite do Natal de 1988, quando ela tinha 23 anos, seu corpo foi descoberto embaixo de uma cama do Duchess Hotel. Venus morreu estrangulada e seu corpo levou quatro dias para ser encontrado.

Venus Xtravaganza

Mas não só Venus sofre com a sua realidade. A década de 1980 é também a década do surto de HIV, que dá início a uma longa e ainda interminável luta de classe. Ainda que sem cura, hoje em dia já é possível viver uma vida completa mesmo infectado pelo vírus. Porém, naquela época, receber o diagnóstico de AIDS era receber uma sentença de morte. Raramente essas pessoas, majoritariamente homens jovens, ultrapassavam seus anos de juventudes, morrendo por inúmeras complicações causadas pelo HIV. Dito isso, você pode procurar: não há um único personagem de Paris Is Burning vivo. Ao longo da década de 1990 e o início dos anos 2000, todos eles tem suas magníficas vidas interrompidas pelas consequências do vírus.

 

Legado

Altamente premiada e merecidamente aclamado pela crítica, Paris Is Burning construiu um legado importante na cultura LGBTQIAP+. Principalmente dentro dos Estados Unidos, todos os termos e gírias vistos dentro do filme, usada pela subcultura dos ballroms, estão hoje incorporadas no cerne do dicionário Queer – Queen, Fish, Butch Queen, Serve, Realness, Beat, Work, Legendary, Reading, Shade. É parte do vernáculo de uma comunidade que continua lutando por direitos e sofrendo em determinadas áreas, mas não deixa a sua vivacidade se apagar e continua criando, vivendo e se transformando.

“Pose”, série do Ryan Murphy, acompanha o cenário de ballrooms de NY da década de 1980

Por esse legado, Paris Is Burning acaba gerando repercussões no mundo midiático. Um dos principais exemplo, e que toma fortes influências e inspirações no cenário filmado por Livingston, é a série Pose, de Ryan Murphy. A produção da FX é a dramatização dessa cultura, explorada ainda mais a fundo e com personagens e histórias que são fortemente baseadas nas vistas no documentário. O título do programa é, inclusive, um termo que nasce no Vogue.

RuPaul’s Drag Race é também fortemente influenciado pelo cenário, de diferentes formas. Uma das principais é um dos mini-desafios que acontecem no reality de competição, quando RuPaul, a apresentadora e famosa drag queen, anuncia que “A Biblioteca Está Aberta“. Este termo vem da elaboração de jogar shade (ou “gongar“, em tradução livre) uma pessoa, falando verdades de uma forma maliciosa e extremamente caricata – “ler” alguém.

Por sua vez, os ballrooms dão inspiração para o serviço de streaming HBO Max, que no dia 27 de maio de 2020 estreou o reality de competição Legendary. O programa acompanha batalhas entre Casas, que competem em desafios de Categorias afim de ganhar um prêmio em dinheiro e o título de Legendary – daí o título, que traduz-se para “Lendário“. A competição traz a atriz Jameela Jamil, a rapper Megan Thee Stallion, o estilista Law Roach e o dançarino/coreógrafo Leiomy Maldonado como jurados, com a apresentação do dançarino Dashaun Wesley.

No ano em que Paris Is Burning completa 30 anos, é importante rever e revisar a nossa história. Reconhecer a importância de figuras como as vistas no documentário e entender quão intrínseco é o legado que esse cultura deixa para nós. É importante também pensar que estamos onde estamos por inúmeros fatores e que a Rebelião de Stonewall, que dá origem a eventos como a Parada do Orgulho, se dá início por conta de alguém como Marsha P. Johnson, uma figura trans, afro-americana, pobre, drag queen e prostituta. O filme de Livingston nos ajuda nesse lembrete ao pontuar e questionar, ainda nós fazendo lembrar mais uma vez do lema dessa comunidade, para que nós nunca esqueçamos.

Nós existimos. Nós estamos aqui. Nós somos Queers.

 

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