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Em "On The Rocks", Sofia Coppola faz um retrato melancólico sobre a disposição humana a projetar nossas patologias nos outros.

Em “On The Rocks”, Sofia Coppola faz um retrato melancólico sobre a disposição humana a projetar nossas patologias nos outros.


DDizem que toda obra é um fruto de seu tempo e que a arte sempre carrega um pouco de seu realizador. Verdade ou não, é no mínimo justo dizer que On The Rocks, o novo filme de Sofia Coppola, possui uma característica muito particular intimamente relacionada a sua autora. A cineasta de Encontros e Desencontros (2003) já não é mais uma talentosa aspirante que tentava pavimentar sua trajetória fora da sombra do pai, como no início dos anos 2000. Coppola já tem o status de uma grande cineasta de identidade própria e On The Rocks é tão interessante por reforçar alguns elementos particulares da diretora na mesma medida em que renega outros.

Nesse sentido, o novo filme parece ser resultado de uma fase de dúvida e questionamento próprio, de uma revisão das angustias da vida adulta. Se em 2003 a cineasta investigou a distância geracional em um encontro melancólico de amor e projeção futura, On The Rocks é mais direto e menos atmosférico em sua proposta.

Como muitos filmes de Coppola a premissa da trama é simples porque a cineasta funciona melhor no caminho de histórias que se sustentam em detalhes singelos e delicados que compõe uma atmosfera maior. Dessa vez, acompanhamos o cotidiano desinteressante de Laura (Rashida Jones), uma mulher que se encontra em uma fase de pouco tesão na vida – seja ela sexual e afetiva com seu marido workaholic (Dean, interpretado por Marlon Waynes); no interesse pela vida das duas filhas que tanto lhe tomam tempo; ou na inércia de conseguir produzir e escrever seu livro de romance.

Neste momento de insegurança e insatisfação, Laura conta para seu pai Felix (Bill Murray) – a figura do homem patriarcal rico e preso em um espaço-tempo misógino – sobre a suspeita de estar sendo traída por Dean. E assim, a filha é coagida pelo pai a adentrar em uma espiral investigativa a respeito dessa desconfiança.

Bill Murray e Rashida Jones

Em On The Rocks, Sofia Coppola não evoca uma atmosfera melancólica tão forte e presente quanto em Encontros e Desencontros. O interesse aqui está menos na exigência do espectador, na completude dos vazios do plano em que a cineasta enquadrava Bill Murray e Scarlett Johansson para demarcar os diferentes momentos de vida de cada um. Dessa vez, a relação é mais direta e a cineasta se apoia em um roteiro sustentado, sobretudo, na dinâmica entre as personagens e não na verborragia do texto.

 

O filme poderia ser ainda mais mastigado do que já é – as repetidas conversas sobre misoginia e uma diferenciação social, cultural e biológica referente a gêneros não agrega tanto ao todo – mas o fato é que os diálogos têm um papel importante na encenação da cineasta. Não pela força do texto, das falas em si (que não é tão profundo ou envolvente), mas principalmente pela dinâmica de projeção das próprias patologias e inseguranças de seus personagens uns com os outros.

Assim, a narrativa se transforma em uma terapia familiar na medida em que Laura e seu pai partem para a jornada de investigação e espionagem de Dean, criando o contexto perfeito tanto para uma comédia pautada no exagero de situações corriqueiras, quanto para investigar o ímpeto humano de projetar em terceiros as inseguranças e patologias pessoais. Se a protagonista desconfia de seu marido, isso acontece pelo trauma que seu pai ajudou a construir no passado; enquanto o próprio Dean – mesmo que deixado de lado pelo roteiro – trabalha cegamente porque enxerga seu posto de homem bem-sucedido como um atrativo diferencial para si.

Marlon Waynes e Rashida Jones

O texto de Coppola é inteligente porque entende que a terapia familiar entre Laura e seu pai só precisa ser verbalizada quando a protagonista chega a seu ponto máximo de desgaste – de sua própria condição de inércia perante ao bloqueio criativo, do marasmo do momento de seu casamento e, acima de tudo, da relação com seu pai e das patologias que se criaram do passado.

Fugindo da verborragia textual, Coppola filma Bill Murray com uma graciosidade que empatizam o personagem com uma naturalidade ímpar. Esse é outro ponto recorrente da filmografia da diretora, além de seu olhar melancólico para certas relações humanas: a delicadeza com que estrai muita força semântica de situações corriqueiras do cotidiano.

Nessa jornada de enfrentamento das condições amorosas de seu casamento, Laura passa por uma percepção de sua condição como individuo, como mulher inserida em um casamento e em uma relação paternal que são muito parecidas, apesar de distantes entre si – até no sentido afetivo.

Sobretudo, On The Rocks tem seus melhores momentos quando Sofia Coppola foca seu olhar sensível para situações humanas corriqueiras e representativas de estado, uma condição a qual nos encontramos e temos dificuldade de assumir. Como seres altamente sociáveis e igualmente cegos em nossa própria bolha, Coppola faz um retrato da condição apática que podemos assumir quando passamos a projetar nossos anseios e inseguranças em pessoas que nos rodeiam ou, como em On The Rocks, na tela de cinema.

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