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Em "Nomadland", Chloé Zhao faz um tocante retrato, ao mesmo tempo íntimo e político, da relação de desamparo do proletariado dos EUA.

Em “Nomadland”, Chloé Zhao faz um tocante retrato, ao mesmo tempo íntimo e político, da relação de desamparo do proletariado dos EUA.


“Eu trabalhei numa empresa durante 20 anos. Meu amigo Bill trabalhava para  a mesma empresa. E… ele teve insuficiência hepática. Uma semana antes de se aposentar. O RH ligou para ele no hospital e disse: ‘Vamos falar sobre a sua aposentadoria’. Ele morreu 10 dias depois. Nunca teve a chance de usar o veleiro que ele comprou e ficou em sua garagem. E ele perdeu tudo. Então ele me disse antes de morrer: ‘só não perca tempo, garota. Não perca tempo’. Então me aposentei assim que pude. Não quero que meu veleiro esteja na garagem quando eu morrer. E não está. Meu veleiro está aqui no deserto”.

EEm torno de uma fogueira, um grupo compartilha histórias de vida. Ouvimos de alguém que desenvolveu estresse pós-traumático após a Guerra do Vietnã e de uma pessoa que perdeu a mãe e o pai num curto intervalo de tempo. Em seguida, é a vez da mulher parafraseada acima. O que todos têm em comum é justamente o fato de terem decidido tirar seus respectivos veleiros da garagem.

Baseado no livro homônimo de Jessica Bruder, o longa Nomadland é centrado na mudança de vida de Fern (Frances McDormand), uma mulher que, após ter a vida gravemente afetada pela crise econômica e perder tudo, decide morar numa van, se submetendo a curtos contratos de trabalho para poder conseguir alguma renda. A produção foi escrita, dirigida e editada por Chloé Zhao, jovem chinesa radicada nos Estados Unidos.

Logo nas primeiras tomadas, nos deparamos com paisagens de tirar o fôlego. O espectador se torna um companheiro de viagem de Fern: encaramos vastas locações e, em determinados momentos, sentimos um vazio – que não é necessariamente incômodo, mas sim ligado ao ato de contemplar. Uma decisão interessante da diretora é a de realizar cortes abruptos, muitas vezes de um diálogo para uma paisagem, o que nos permite ter certo espaço para assimilar a fala exposta anteriormente.

Na obra, é possível observar ainda diversos cruzamentos entre ficção e documentário. O segundo gênero se configura especialmente a partir de outra ótima escolha de Zhao, a de escalar verdadeiros nômades para o elenco. Os diálogos de Nomadland, portanto, soam bastante genuínos, e, dessa maneira, podemos entender verdadeiramente a razão deles serem itinerantes.

Fern, brilhantemente interpretada por McDormand,  é justamente a nossa porta de entrada para esse mundo. Nossa protagonista é repleta de complexidade: uma mulher forte e cheia de fraquezas, decidida e ao mesmo tempo titubeante. Esses paradoxos dizem muito sobre o próprio filme, que é feliz ao passo que apresenta marcas de tristeza, é bastante intimista ao mesmo tempo em que retrata uma sociedade. No final das contas, essas posíveis contradições são uma força.

 

DEPOIS DA CRISE

“As casas abandonam a sim mesmas

fogem de si mesmas

um dia você retorna

e a casa não está lá

está apenas seu molde

casca ou carcaça

sai então à caça

da casa

em viagem

ou fica lá

onde já não está”

— “Como se fosse a casa (uma correspondência)”, de Ana Martins Marques

 

O abandono é um elemento importante a ser observado no filme. Os personagens foram abandonados pela sociedade, pelo Estado e, assim, passaram a ocupar espaços que também foram deixados. A partir de Nomadland, descobrimos um Estados Unidos vasto, ainda pouco explorado, com riquezas inesperadas a oferecer. A solidariedade é uma delas.

Fica claro, ainda, que aquelas pessoas perderam tudo não por “terem se esforçado pouco”, como alguns podem alegar. A personagem Linda May, por exemplo, expõe que trabalhou duro a vida toda e, na hora de se aposentar, se viu frustrada quando percebeu que receberia um valor baixíssimo.

Esse acontecimento é extremamente representativo de um país que vende um ideal de vida, o conhecido “sonho americano”. No livro A Tirania do Mérito, o autor Michael J. Sandel expõe que a retórica meritocrático é a espinha dorsal do discurso hegemônico estadunidense. “Em anos recentes, políticos de ambos os partidos reiteraram esse lema a ponto de quase se tornar um mantra (…) Ronald Reagan, George W. Bush e Marco Rubio entre os republicanos, e Bill Clinton, Barack Obama e Hillary Clinton entre os democratas, todos invoncaram-o”.

Outro pano de fundo importante para a compreensão da realidade apresentada é a precarização do trabalho. Como defende a pesquisadora Vera Follain em seu livro A Ficção Equilibrista: Narrativa, Cotidiano e Político, o mundo do trabalho voltou a ser narrado no cinema a partir das crises do neoliberalismo.

Nomadland definitivamente se encaixa nesse grupo de filmes, especialmente porque boa parte do grupo retratado decidiu mudar de vida após a crise de 2008, responsável por desestruturar a vida de inúmeras famílias estadunidenses.

Em determinado momento do filme, o representante Bob Wells afirma: “Nós não apenas aceitamos a tirania do dólar, do mercado. Nós as abraçamos. Nós alegremente vestimos a sela da tirania do dólar e vivemos toda a nossa vida assim. Pensem como uma analogia a um burro de carga. Um burro de carga disposto a trabalhar até a morte e então ser colocado para fora. E é isso que acontece com muitos de nós. Se a sociedade quer nos abandonar, mandando a gente, burros de carga, para fora, nós temos que nos unir e cuidar uns dos outros”.

Ao registrar lindos atos de gentileza, Zhao deixa claro que é exatamente isso que o grupo faz: cuidam uns dos outros. Todos seguem suas respectivas jornadas individualmente, o que não significa, de forma alguma, que estejam sozinhos. Cada um, dentro de sua própria trilha, encontra mãos estendidas ao longo do caminho. É um paradoxo pensar que essas pessoas, que escolhem viver solitárias, talvez estejam menos inseridas na lógica do hiperindividualismo do que quem vive em sociedade.

Ao ser perguntada por uma antiga aluna se ela é “homeless” (sem lar), Fern responde: “não sou sem lar, apenas sem casa. Não é mesma coisa, certo?”. E ao terminarmos Nomadland, sabemos a resposta: não, não é a mesma coisa.

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