fbpx
Em 2019, a morte de Ingmar Bergman completou 100 anos, mas o legado deixado pelo famoso cineasta permanece imortal e de grande valor.

Em 2019, a morte de Ingmar Bergman completou 100 anos, mas o legado deixado pelo famoso cineasta permanece imortal e de grande valor.


MMuita gente diz hoje “não ter saco para Bergman”. Outro argumento comum usado também é que seria “datado”. Para mim seria como dizer o mesmo para Shakespeare. Tudo é datado se levarmos em conta a época em que foi realizado, seus contextos históricos e sociais que ali são retratados. Ao mesmo tempo, tudo é atemporal e permanente, desde as tragédias gregas às peças de Shakespeare e ao cinema de Ingmar Bergman, quando estes retratam relações interpessoais, sentimentos humanos e estados psíquicos.

A indecisão de Hamlet ao agir por ser intelectualizado e reflexivo, o ciúme de Otelo, a inveja de Iago, a ingenuidade do poderoso arrogante que divide a herança em vida do rei Lear são bons exemplos em Shakespeare. Assim como serão sempre atemporais as questões que Bergman escreveu e filmou, como a relação entre mãe e filha retratadas em Sonata de Outono (1978); entre marido e mulher em Cenas de um Casamento (1973); entre poderosos conservadores e artistas criativos originais em Através de um Espelho (1971); entre a doença perpassando as relações familiares burguesas em Gritos e Sussurros (1972); entre o Homem e a morte em O Sétimo Selo (1957); na revisão da vida a partir da volta ã infância em Morangos Silvestres (1957) e no mergulho dentro de sí mesmo retratado em Face a Face (1975).

A genialidade e a originalidade da obra de Ingmar Bergman está no fato do cineasta ter sido o roteirista e diretor de todos os seus filmes, realizando obras autorais que iam da primeira ideia à realização final. Como escritor, Bergman era generoso, sempre acabava seus livros-roteiros dizendo que tinha sido daquela forma que ele tinha imaginado e entendido a história e os personagens, seus destinos e sua conclusão, mas que se o leitor entendesse de outra forma ou imaginasse um desfecho diferente, para ele estava bem.

Bergman escreveu e filmou sobre as relações familiares, sobre a presença ou ausência de Deus, sobre a angústia da morte, sobre as angústias em geral, sobre o dinheiro perpassando as relações pessoais e sobre o tempo, este presente em todos os seus filmes onde o “tic-tac”de relógios de parede são onipresentes. O jornalista Paulo Francis bem observou que o cineasta foi uma espécie de Proust do cinema. O passado, a infância, a temporalidade nas relações humanas, sua finitude, foram temas permanentes de sua obra. Bergman era conhecido como um brilhante, meticuloso e exigente diretor de atores, mas seu texto é de grande originalidade e sutileza, onde pode-se ver a grandeza do seu lado escritor.

Embora nunca tenha feito sessões de análise, são inevitáveis associações freudianas, especialmente no que toca nas relações familiares e no inconsciente através dos sonhos. O excelente Quando Duas Mulheres Pecam (1966), por exemplo, é um filme sobre a transferência, onde uma atriz (vivida por Liv Ulmann) após ter uma ausência e esquecer um diálogo numa montagem de Electra é levada para tratamento e recuperação numa ilha (a mesma Färo que se tornaria depois sua residência) com a enfermeira Alma (Bibi Anderson). Num ambiente isolado, entre cenas externas de caminhadas na praia e cenas de interiores numa casa de veraneio, a relação se inverte e os papéis de trocam. O silêncio da atriz faz com que a enfermeira fale o tempo todo, entre em análise”, reveja sua vida através de um interlocutor que é apenas o ouvinte e revele suas fantasias, emoções, medos, anseios e traumas.

O tema do isolamento da sociedade numa ilha em busca de uma vida livre das máscaras e da demanda social está também em A Paixão de Ana (1969), A Hora do Lobo (1968),e por sua vez o isolamento como fator determinante do afloramento de crises emocionais está em Através de Um Espelho, completando a chamada “Trilogia do Silêncio”. Há muito de Ingmar Bergman nestes filmes, ele mesmo dividido entre uma vida profissional intensa dirigindo cinema, teatro e especiais para a TV, além de comandar também o Teatro de Estocolmo, mas ao mesmo tempo reservado e cada vez mais recluso na ilha de Faro.

Cena do filme “O Sétimo Filme”

Filme brilhante e hoje as vezes ridicularizado em esquetes de humor sobre a sisudez sueca, O Sétimo Selo mostra a capacidade do diretor em filmar com orçamento modesto cenas de impacto já na abertura do filme quando a morte aparece numa praia ao cavaleiro medieval recém chegado das cruzadas. A famosa estrutura narrativa onde o ex-cruzado joga xadrez com a morte evoca Sísifo na Europa do Século XIII . Como diz a Morte no filme, o protagonista pode adiar seu fim a desafiando no jogo de xadrez, mas no final ela sempre vence.

Tema pouco retratado no cinema, o dinheiro perpassando as relações familiares e pessoais em Ingmar Bergman é retratado como na dívida do filho com pai  e na senhora de idade rica que só recebe visitas de familiares quando querem pedir dinheiro emprestado, visto em Morangos Silvestres e na cena onde a família burguesa expressa sua mesquinharia a não querer recompensar financeiramente a empregada Ana, que cuidou da irmã doente e recém falecida Agnes na trama de Gritos e Sussuros. Este filme tem também grande ousadia estética, todo filmado em 3 cores básicas, no contraste entre as cores vermelho (a cor da alma para Bergman), branco e preto, enfocando a complexidade do desnudamento da personalidade de duas irmãs que cuidam da outra irmã doente e sofrendo de grandes dores, da criada, de seus maridos e amante.

O diretor inovou por ter sido o primeiro cineasta a filmar a volta à infância como recurso narrativo onde o personagem mais velho se vê de fora em cenas de seu passado, como feito em Morangos Silvestres, ou então quando optou por filmar sonhos como realidades concretas na mesma película, como na cena inicial do filme (um impressionante “travelling” expressionista) e em quase todo o tempo de duração de Face a Face, que se passa literalmente no mundo interior onírico da protagonista, a psiquiatra Jenny.

Cena do filme “Através de um Espelho”

São muitos os filmes e sua grande maioria são obras primas dentro do seu estilo. Sorrisos de uma Noite de Amor (1955) citando Sonhos de uma Noite de Verão de Shakespeare é uma das poucas comédias de Bergman, mas que demonstram o timing cômico perfeito. Já O Olho do Diabo (1960) trata de uma aposta faustiana sobre a conversão de Don Juan, abordando os temas recorrentes em sua filmografia de forma leve, sensual e irônica. Por falar em sensualidade, Mônica e o Desejo (1953) pode soar hoje em nada ousado, mas nos anos cinquenta escandalizou plateias conservadoras mostrando uma protagonista que vive sua sexualidade de forma independente.

Sonata de Outono tem o feliz encontro de Ingrid Bergman e Liv Ulmann na história do reencontro de mãe e filha depois de anos de separação. Na famosa cena central do filme, Eva decide tocar para a mãe o segundo prelúdio de Chopin, conhecido pela melancolia e pelo sentimento de morte do próprio compositor já doente. É um dos muitos exemplos do brilhantismo, da sensibilidade e do apuro estético de Bergman. Na cena, o olhar maternal da mãe para a filha mostra tudo, saudade, culpa, arrependimento, amor, carinho, vontade de cuidar, distanciamento e condescendência. Em seguida Charlotte (a mãe) ajeita a partitura e toca com perfeição, assumindo a postura de concertista de renome internacional ao contrário da filha que era a pianista da paróquia do marido, explicando antes a alternância entre a dor e o alívio nos acordes do prelúdio enquanto agora por sua vez Eva (a filha) a olha com admiração, saudade, distanciamento, inferioridade, rancor, sofrimento e idealização. Bergman ainda dá uma aula de sensibilidade musical através da explicação que a mãe dá a filha, falando da diferença entre ser “emocional, mas não emotivo. Chopin não era uma velha chorona”.

Em Fanny & Alexander (1982), o diretor  se propôs a fazer seu último filme, embora depois tenha feito algumas produções para a TV que foram lançadas no cinema como Depois do Ensaio (1984), Na Presença de um Palhaço (1997) e Sarabanda (2003).  Mas de qualquer forma, Fanny & Alexander foi seu testamento cinematográfico, uma síntese perfeita do  seu trabalho, tratando o filme basicamente do não limite real entre realidade e fantasia, entre o mundo objetivo e o subjetivo, entre o material e o espiritual, dicotomia esta penetrando seus temas como a família, amores, Deus e a morte.

Ingmar durante as filmagens do filme “Quando Duas Mulheres Pecam”, de 1966

Para um cineasta sueco que nunca quis ir para Hollywood, o sucesso internacional de Ingmar Bergman que ganhou oito Oscars, sendo três deles de Melhor Filme Estrangeiro, seis Globo de Ouro, sete dos principais prêmios em Cannes (incluindo a única Palma das Palmas já entregue, em 1997), o Urso de Ouro no Festival de Berlim e três prêmios no Festival de Veneza, deveu-se a coerência e à qualidade de seu trabalho e sua obra. Avesso à premiações, estando ausente da maior parte delas, Bergman vivia coerente ao que representava em todos os seus filmes, na vida reclusa e discreta, na busca da complexidade subjetiva da experiência humana ao mesmo tempo como espelho e defesa ao caos e a violência do mundo exterior.


Compartilhe

Twitter
Facebook
WhatsApp
Telegram
LinkedIn
Pocket
relacionados

outras matérias da revista

Back To Top