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Em “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, Charlie Kaufman volta com seu deboche e densidade corriqueiros para falar sobre o falso existencialismo


NNum mundo em que vivemos de projeções e expectativas, as relações nunca encontram um lugar da forma que idealizamos. Como diria o polonês Zygmunt Bauman, tornam-se um mero acúmulo de experiências que “escorrem pelos dedos” e não se encerram em confortáveis definições. Tão logo nos percebemos como réplicas de aspirações antigas e mal realizadas enquanto arrastamos nossos corpos diante de uma impiedosa chuva que nos envelhece, nos deprime e nos angustia. Em Estou Pensando em Acabar com Tudo, mais uma obra propositalmente densa e debochada concebida por Charlie Kaufman, o cineasta brinca com signos de um existencialismo de fachada enquanto traçamos nossa eterna jornada em direção à zona de conforto.

Uma jovem muito pensativa (Jessie Buckley) aceita o pedido do namorado Jake (Jesse Plemons) de acompanhá-lo numa visita à fazenda da família. Durante o trajeto, sob uma nevasca crescente, o casal conversa sobre sobre suas respectivas idiossincrasias enquanto acessamos o que se passa na cabeça da mulher. Chegando na fazenda, são recebidos depois de muita demora pela mãe (Toni Collette) e pelo pai (David Thewlis), dando início a um encontro inusitado. As definições de espaço e de tempo sofrem distorções ora cômicas, ora trágicas, enquanto paralelamente acompanhamos a rotina de um zelador (Guy Boyd) numa escola rural.

Adaptado a partir do livro homônimo do canadense Iain Reid, publicado em 2016, o filme, também roteirizado por Kaufman aborda uma curiosa investigação sobre nossas identidades numa realidade cada vez mais fragilizada pela hiperconectividade materialista.

A TRAJETÓRIA DE KAUFMAN
O novaiorquino ganhou notoriedade pelos seus ousados exercícios de metalinguagem em Quero Ser John Malkovich e Adaptação, ambos dirigidos por Spike Jonze. Sua relevância na indústria foi consolidada com o Oscar pelo roteiro de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, realizado por Michel Gondry. Não tardou a deslanchar uma sucinta, porém notável carreira de diretor, concebendo o enigmático Sinédoque, Nova York e a premiada animação Anomalisa.
Jessie Buckley e Jesse Plemons, respectivamente

A mulher interpretada por Jessie Buckley é construída como um avatar do espectador, que aos poucos vai adentrando na diegese claustrofóbica e delirante do filme. Ela sequer tem um nome! Tem vez que é referida como Louise, depois como Lucy, seguida por Ames, entre outras opções. A composição da atriz busca agregar e contornar as mais diminutas características da personalidade millennial: narcisista, profissionalmente frustrada e cercada por ideações de ruptura ou suicidas (o próprio título é quase um bordão entre seus pensamentos).

Sua função na história de Estou Pensando em Acabar com Tudo não é a de finalizar suas aflições, mas de abrir uma janela para compreendermos os conflitos que se passam na mente do outro protagonista: Jake. Diferente do que acontece com sua companheira, não temos acesso aos pensamentos dele. Apenas o observamos reagir passivamente aos desabafos da jovem e à excentricidade dos pais. Quando conta histórias, esboça poucas emoções e só perde a paciência quando é diretamente referenciado num momento de confraternização. É sua natureza reservada e inexpressiva que contribui para o desenvolvimento da personagem feminina.

Kaufman aproveita desse efeito de contraste psicológico entre os dois personagens para explorar o pragmatismo das interações humanas. Há um pouco do tato cínico e misantrópico de Polanski aqui, enquanto muitos dos momentos de ironia e comicidade me remeteram à Woody Allen. Referências ao próprio cinema incluem conversas e exposições que refletem o rico repertório cultural dos personagens (Jake enumera musicais como se fossem faixas do álbum favorito). Quando somos apresentados a figura do zelador, não tardamos a nos perceber diante de uma obra multifacetada, ainda que as cenas se passam em só três lugares principais: estrada, casa da fazenda e escola.

Da esquerda pra direita: David Thewlis, Toni Collette, Jessie Buckley e Jesse Plemons

O que dá início a estratificação interpretativa são os diálogos. Como todo bom roteirista, Kaufman consegue conduzir a narrativa pela ação, mas suas digitais encontram-se principalmente na dissonância das falas com as relações dos objetos em cena – por isso o uso indiscriminado do voice over. A partir de um amontoado de enunciações, somos convidados a problematizar os espaços apresentados e os rumos perseguidos na medida em que as sequências se desdobram. O que faz desse filme um prato cheio para quem aprecia uma boa expansão filosófica de conteúdo.

Tal personalidade não agrega necessariamente um valor formal à obra. Como muitas coisas na natureza e valendo também no cinema, a forma sustenta funções. Nesse aspecto, Estou Pensando em Acabar com Tudo é um filme mal resolvido esteticamente. Em uma mesma sequência, temos a impressão de que estamos assistindo à vários takes de uma mesma cena. Isso porque as posições de câmera variam muito entre cortes excessivos, enquanto a narrativa não avança no mesmo ritmo.

A própria trilha sonora assume um efeito de aniquilação, ao exacerbar emoções ainda pendentes. Quando as transições ocorrem, elas soam bruscas e artificiais. Por mais que esses defeitos se alinhem na proposta surrealista da crítica comportamental, sacrificam a tradução coesiva de suas ideias, bem como enfraquecem a lógica dos acontecimentos. No fim das contas, é um filme que se atrapalha com a própria duração que recebeu.

Por outro lado, Kaufman é bem sucedido ao apostar numa simbologia que rima com seus diálogos. Somos agraciados com as teses contemplativas de Jake e sua namorada em longas interações no carro ou nos arredores da fazenda. Um momento em particular me sensibilizou: aquele em que a mulher questiona os corpos dos animais deixados para morrer no frio. A partir dessa cena, Estou Pensando em Acabar com Tudo mostra a que veio e deixa claro sua disposição em discutir simultaneamente a ideia de esperança e de abandono como as principais abstrações da mente humana, opositoras em relação à noção de tempo e suas inevitabilidades.

Nessa queda de braço, a velhice é retratada como uma grande vilã. A figura do zelador se revela ameaçadora, enquanto os pais de Jake, em nenhum momento, evocam conforto e acolhimento. Pelo contrário: são vistos como um fardo, figuras depreciativas que sonegam o valor da resiliência no mundo material. Efeitos especiais de envelhecimento não são economizados para garantir como essa obra não se encanta com o que vive de passado. Ao “pensar em acabar com tudo”, nossa protagonista está se reafirmando como detentora do próprio destino, ainda que este se revele breve, trágico e sem importância.

Com uma linha de pensamento emprestada de Schopenhauer, sobre a vida como adiamento da morte, é que Kaufman se apega ao seu último recurso. A materialização da arte desenvolvida a partir da observação da natureza, da contemplação dos corpos que passam e dos objetos que juramos ter visto pela janela do carro, é nosso maior elo de ligação entre o intelecto e as adversidades do tempo. Manifestação que se encontra claramente ameaçada pela exploração comercial e suas demandas formulaicas, ou ainda pelas deduções de uma sociedade cada vez mais apática e desencontrada do mundo. Tais observações caracterizam o erro sublime de acreditar que sempre haverá novas oportunidades para contemplar um novo nascer do Sol, num novo amanhecer, seja sentado num balanço no parque ou numa cadeira de balanço. O que importa mesmo é quantas toneladas de neve ajudarão a resguardar nossa carne dos abutres a espreita.

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