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Os vícios e ofícios de Aronofsky

Darren Aronofsky tem um catálogo de filmes de grande sucesso, fazendo dele um diretor marcado pelas suas histórias cheias de nuances e complexidade.

Darren Aronofsky tem um catálogo de filmes de grande sucesso, fazendo dele um diretor marcado pelas suas histórias cheias de nuances e complexidade.


UUm palhaço trabalha para a nossa diversão. Como é um palhaço dentro de casa? Fora dos palcos, um ser humano comum. Sua maquiagem não o torna imune aos sentimentos. Eles sonham, sofrem e amam como todo mundo. Palhaços também têm coração. Sobre a vida caseira de um palhaço, com todos os seus vícios e ofícios, baseia-se a filmografia de Darren Aronofsky.

Nascido em 1969 e criado nas entranhas nova-iorquinas, o diretor de filmes como Noé (2014), Cisne Negro (2010) e Réquiem para um Sonho (2000) começou sua carreira no cinema relativamente novo. Aos 30 anos, com seu primeiro longa-metragem intitulado Pi (ou, mais apropriadamente, π), recebeu o prêmio de Melhor Diretor no prestigiado Festival de Sundance, atraindo olhares de grandes estúdios e produtores. De maneira fulminante, Aronofsky abdicava de suas pretensões na pesquisa científica para se consagrar na sétima arte.

Formado em antropologia e estudos sociais na Universidade de Harvard, Darren Aronofsky começou a trabalhar com cinema no começo da década de 90. Seu curta-metragem, Supermarket Sweep, lançado em 1991, chamou a atenção de produtores do circuito regional para a elaboração de um longa-metragem, concluído sete anos depois. π foi financiado por meio de uma vaquinha entre familiares, amigos e colegas. O projeto, orçado em 60 mil dólares, rendeu alguns milhões que foram distribuídos aos colaboradores. Além disso, π foi, aparentemente, o primeiro filme disponibilizado legalmente para download, ainda nos tempos obscuros da internet discada.

Os artefatos e as referências não negam: π, como muitas obras da virada do milênio, é um cyberpunk – gênero conhecido por retratar os efeitos de nossa imersão em um mundo de tecnologia desenfreada conduzindo colapsos internos e sociais. A ambientação do filme restringe-se quase totalmente ao pequeno condomínio em que, num de seus apartamentos, mora um matemático obsessivo na busca por padrões que regem o universo. É um insano querendo escapar da rede tecida pelo senso comum. Ao seu redor, respiram pessoas enfeitiçadas pela miragem de um sistema. Como disse o crítico Roger Ebert à época do lançamento: π é um estudo sobre a loucura e sua parceira, a genialidade”. Tão binário quanto à linguagem das máquinas é a percepção que os coadjuvantes (e nós) alimentamos sobre o lunático Max.

Jared Leto em “Réquiem para um Sonho”

Réquiem para um Sonho foi o trabalho seguinte. Com verba e prestígio, aliado a um elenco competente (incluindo o ainda inexperiente Jared Leto e a oscarizada Ellen Burstyn), Darren Aronofsky alçou voos ainda maiores com uma obra excessiva, incômoda e visceral. Popularizando a hip hop montage – em que os cortes são tão rápidos e ritmados que moldam o som diegético a uma função musical – o diretor ganhou a admiração de vários entusiastas ao redor do mundo, bem como passou a ditar tendências.

Filmes sobre drogas ainda são um tabu. Representar adictos requer cuidados que vão além da lógica narrativa. São, acima de tudo, seres humanos que buscam preencher um vazio existencial. A marginalização, a violência e a deturpação física e moral decorrente são frutos do meio. A maneira como a comunidade enxerga e lida com viciados revela muito as falhas de si mesma. Réquiem para um Sonho é, por definição, um funeral para as aspirações ingênuas, cada vez mais dependente das frias burocracias que constituem uma apática ideia de sociedade.

Ganhando cada vez mais notoriedade, Aronofsky não deixou de acumular novas ambições. Em 2006, seu filme mais enigmático tomou forma. Fonte da Vida, estrelado por Hugh Jackman e Rachel Weisz, não obteve o mesmo sucesso de público e crítica. Trabalhando em cima de uma temática esotérica e existencialista, o filme teve problemas de produção, trocas de elenco e refinanciamentos. Com muita persistência, adquiriu consistência cinematográfica e entrou em cartaz. Artigos ainda hoje pipocam na internet buscando reconhecer o valor de Fonte da Vida enquanto dissecam sua nada fácil narrativa.

De maneira semelhante, Noé, lançado em 2014, dividiu o público como poucos filmes fazem atualmente. O personagem bíblico sempre instigou o diretor. Criado por uma família judia, Darren Aronofsky se considera ateu, porém é um estudioso de temas religiosos que permearam tanto π quanto Fonte da Vida. Sua representação do construtor da arca, encarnada na pele de Russell Crowe, fugia de paradigmas pretéritos. Contemplamos aqui a luta de um homem incompreendido, amparado somente por ambíguas noções do mundo que o cerca, incluindo sua família, seus antepassados e sua missão divina…

Para conquistar apoio e realizar essa sonhada superprodução, foi importante a indicação ao Oscar de melhor diretor. Voltemos para 2010, quando Cisne Negro estreou no Festival de Veneza e conquistou grande interesse da mídia. Abordando a trajetória de uma bailarina (Natalie Portman) rumo à triunfante apresentação de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, o filme novamente mergulha na mente psicótica de seu protagonista.

Mickey Rourke e Marisa Tomei em “O Lutador”

Originalmente, a história da bailarina Nina deveria ter sido apresentada ao lado a do lutador de luta livre, Randy. Quis o destino que cada um ganhasse seu próprio filme. Cisne Negro veio depois, fazendo maior sucesso e ganhando alguns prêmios importantes. O esquecido – porém aclamado – O Lutador, estrelando Mickey Rourke, chegou discretamente em 2008 e consolidou de uma vez por todas o talento de Darren Aronofsky.

Randy é um resquício de ser humano. Seus tempos de glória já se foram. Vive num trailer, trabalha meio período na área de frios de um supermercado e, eventualmente, participa de lutas na cidade. Elas não são como antigamente. Servem mais para agradar antigos fãs, assim como sessões de autógrafos ou vendas de acessórios raros. Eles não ligam muito para o que se passa por trás daquela pele cheia de cicatrizes. Sua vida, movida pela atmosfera dos ringues, precisa de ressignificações. Catalisado por um problema de saúde e pela amizade com uma adorável stripper (Marisa Tomei), Randy busca aproximar-se de sua filha, sua única âncora afetiva com o mundo exterior.

A inspiração para a história de Randy foi exatamente a figura do palhaço, mencionada no parágrafo inicial. Especificamente, a música de Charles Mingus, lançada em 1957, onde somos apresentados impiedosamente à tragédia de um palhaço. Jean Shepherd nos conta como uma pessoa que começa a perceber diferente o mundo a sua volta começa uma batalha contra si própria. Vivemos acorrentados aos julgamentos alheios. Precisamos ser bem sucedidos e acolhidos. Quando isso não acontece, de que serve o mundo e as pessoas que nele habitam?

Podemos estender tal questionamento à filmografia de Darren Aronofsky. Suas técnicas de direção não escondem uma admiração pela psique humana: seu funcionamento inato e suas transformações. Closes, planos fechadíssimos que vão de encontro aos travellings intimistas – a maioria deles retratando as costas do personagem; plongées durante o banho; split-screen no pós-sexo; muita câmera na mão. Essas e outras técnicas compõem o rol de planos que caracterizam as obras do diretor. Suas influências são várias: de Terry Gilliam à Hitchcock, de Polanski à Kurosawa, ou de Fellini ao animador Satoshi Kon (cuja obra, Perfect Blue, serviu de base criativa nas composições de Cisne Negro).

Apreciar o cinema de Darren Aronofsky nos apresenta razões formidáveis para seguir aprendendo não só sobre a sétima arte, como também sobre a natureza humana. É um estudo ininterrupto a respeito de como entendemos o mundo e como este nos entende. Em 21 de setembro de 2017, mãe!, seu mais novo trabalho estrelando Jennifer Lawrence e Javier Barden, chegará aos cinemas brasileiros. Uma oportunidade a mais para conferir as facetas de um palhaço que existe em todos nós e que o cineasta não cansa de ressaltar.


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