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"Arábia" é um filme impactante, em uma história que conecta diferentes realidades em um recorte de Minas Gerais.

“Arábia” é um filme impactante, em uma história que conecta diferentes realidades em um recorte de Minas Gerais.


AArábia(2018) é um filme de tomada de consciência. Isso, por si só, já diz muito sobre ele e sobre os diretores Affonso Uchoa e João Dumans, que repetem a parceria de sucesso criada em A Vizinhança do Tigre (2016).  Centrado na cidade de Ouro Preto, o filme passa suas quase duas horas sem mostrar uma igreja ou arte barroca que a caracterizam, e por isso diz uma verdade sobre o que vive por trás dos cartões postais: a cidade que fez fama pela exploração de seres humanos em busca de ouro e hoje sobrevive da exploração de seres humanos em beneficiamento de alumínio e bauxita. Mas antes de falar do filme, preciso falar de mim, essa que vos fala, pois filmes tem contexto e pessoas que os assistem tem contexto, e o meu é da ouropretana que veio para a capital estudar Cinema, e com a experiência de Arábia, reviu sua cidade em uma tela através de olhos que vêem além do que atrai os turistas.

Acompanhamos primeiro André (Murilo Caliari), jovem nativo da cidade de Ouro Preto, morador da Vila Operária. Os primeiros minutos do filme mostram André de bicicleta, percorrendo uma grande rodovia alta, com um abismo e arvoredo ao fundo, em seu único movimento de liberdade da narrativa. Alheio a sua realidade, só se importa com seu irmão e parece apático, em negação de sua existência. A direção do filme reforça isso e a câmera vê o mundo assim, com enquadramentos que não mostram o rosto das personagens. Chegamos a transpassar nosso segundo protagonista na visão de André, mas não o reconhecemos nem o damos valor, nem o rosto de sua própria tia, a enfermeira da região, André enxerga. Eles são só fantasmas, alienações. No som, ouvimos o tempo todo o barulho da fábrica, um plano de fundo constante e que liga nossos dois protagonistas.

https://www.youtube.com/watch?v=7cDtbbcrZHc

A segunda parte de Arábia começa quando a tia de André pede que ele vá até a casa de um operário buscar documentos e roupas pois o mesmo está sendo hospitalizado, e André se depara com uma carta, o relato da vida daquele desconhecido sem amigos e parentes numa cama de hospital. Ele então conhece Cristiano, seu eu oposto. Lados diferentes da mesma moeda de alienação sobre si, Cristiano é o polo que se entrega, se apaixona, se arrisca, e mesmo que de forma efêmera,  faz diversos amigos ao longo da narrativa, aprende e tenta entender a todos, e enquanto André nem se importou em enxergar Cristiano, ele não só o faz, mas até empatiza com ele.

Cristiano (Aristides de Souza, que também estrela A Vizinhança do Tigre) é um homem pobre nascido no bairro Nacional na cidade de Contagem, que ao sair da cadeia decide não querer mais essa vida e cai na estrada. Seguimos cada passo dele em sua aventura de autodescoberta sobre sua própria significação e da função que desempenha nas engrenagens do mundo. E essa jornada é majoritariamente de amor, não só porque Cristiano considera o amor por Ana seu único capítulo da vida digno de nota, mas porque ele tende a demonstrar uma fé e esperança numa vida feliz que faz com que o espectador se apegue e o defenda, mesmo quando comete atos questionáveis.

Ele, então, passa por uma plantação de mexerica, onde aprende pela primeira vez sobre movimento sindical, fato que o marca pelo resto da narrativa, além de nos proporcionar uma das cenas mais bonitas de Arábia: Cristiano e seu primo tocam juntos um violão. O primo, da roça, toca uma moda sertaneja, enquanto Cristiano, em seguida, pega o violão e toca um rap, um pedaço de sua alma contagense. Ali, duas Minas Gerais diferem, dialogam e se entrelaçam em suas realidades. Mas Cristiano segue (ser explorado na roça não é mais pra ele) e passa pela reforma de um puteiro e diversos bicos até conhecer Ana numa fábrica de tecidos, por quem se apaixona, até tudo chegar ao fim. A decepção amorosa o leva a aceitar um emprego junto de seu ex-parceiro de cela, Cascão, na fábrica de alumínio, levando-o a cidade e aos acontecimentos que iniciam a narrativa.

Arábia acerta na beleza e na pessoalidade; Cristiano é facilmente identificável e apesar da vida sofrida, não é um homem sofrido. Sua fala cadenciada, com frases pequenas, mas bem construídas, nos acompanham o filme todo, e apesar de tratar-se de uma leitura constante, a boa conversa entre os diálogos, a montagem e a trilha sonora faz com que não fique maçante, fazendo com que você se sinta preso e inebriado ao diário de Cristiano, sempre querendo mais. Acompanhamos passo a passo enquanto cada injustiça social assola nosso protagonista, e como cada uma delas erigem a escalada dele até sua tomada de consciência. Os enquadramentos e a quase ausência de decupagem criam quadros bonitos e bem pensados, a fotografia é leve, investindo na luz natural, com cores sutis. O filme nega os planos comuns, como o plano e contra plano que acontece pouquíssimas vezes, e investe no mais distante e afastado com o objetivo claro de desacomodar e ganhar carga dramática para essas cenas.

Envolvidos como estamos com essa construção, não é de se surpreender que o monólogo final de Arábia seja tão impactante. Como já disse, o barulho de fundo da fábrica perpassa todo o filme e liga as realidades de nossos protagonistas, mas é o silêncio do clímax que conta aos nossos personagens a verdade. É o silêncio da grande fábrica barulhenta que ecoa neles e em nós e nos faz cair no fluxo de consciência sobre o ser trabalhador, e que nos faz quase comemorar quando Cristiano se reconhece como dono de sua vida e deseja o fim de sua servidão. Nós nos felicitamos e desejamos que essa liberdade chegue, que se inicie uma revolução como a de Seu Barreto nas lavouras de mexerica. Porém algo nos impede do regozijo; nós já sabemos o fim dessa história, já sabemos o destino de Cristiano. Esse entendimento doloroso é a realidade dura do fim do filme, mas Uchoa e Dumans são generosos e nos deixam por alguns segundos fitando a tela preta e o grande silêncio, para garantir que a mensagem ressoe até nossos ossos.


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