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Com as revelações de 2017, veio a luz da sociedade que Kevin Spacey é um ator talentoso com um legado sombrio para fora das telas.

Era uma noite fria de um domingo qualquer. Eu navegava na internet sem me deparar com nenhuma notícia bombástica, até que um post no site BuzzFeed News foi publicado às onze e trinta e dois da noite, com o título “Actor Anthony Rapp: Kevin Spacey Made A Sexual Advance Toward Me When I Was 14”. E de repente, a matéria se expandiu para outros sites de notícia e de comunicação. Em questão de horas, estavam subindo hashtags no Twitter, alcançando uma das maiores visualizações nos trends. A ficha demorou a cair para entender a gravidade da notícia, e para associa-la a Kevin Spacey. Os filmes em que atuou passavam por minha cabeça: Beleza Americana (1999), Seven: Sete Crimes Capitais (1995), O Preço da Ambição (1994), Os Suspeitos (1995). Depois de ler a matéria inteira, eu entendi: Kevin Spacey foi denunciado por ter abusado um adolescente de 14 anos.

Para quem não conhece, Spacey é um ator Hollywoodiano, de 58 anos, que possui personagens marcantes em sua carreira como Lesther Burnham, personagem do filme Beleza Americana e que rendeu um Oscar ao ator; Keyser Soize, do clássico policial Os Suspeitos, e o mais recente Frank Underwood na famosa série House of Cards, da Netflix. Em todos seus trabalhos, o ator conseguia transmitir um carisma e uma amplitude dramática impressionantes, capazes de criar uma identidade com seus personagens, mas fora das telas, Spacey sempre manteve a sua intimidade e as suas relações pessoais em sigilo.

Após as acusações de assédio contra Kevin Spacey, a Netflix demitiu o ator da série “House of Cards”, cortando as ligações que possuía com ele

No final de outubro de 2017, algumas de suas particularidades foram reveladas à mídia. A primeira, a respeito de sua orientação sexual, situação em que o ator se assumiu homossexual, depois de anos de especulações na internet. Em seguida, a segunda revelação foi de um nível muito grave: há 30 anos atrás, Spacey assediou o ator Anthony Rapp, que na época tinha 14 anos.

O Estopim

O começo de toda essa história que está movimentando a mídia internacional foi uma publicação no jornal The New York Times no dia 5 de outubro, tratando de denúncias de assédio sexual do produtor Harvey Weinstein à diversas atrizes hollywoodianas. Com a divulgação desta notícia, os relatos começaram a se multiplicar, e grande nomes da indústria cinematográfica, como Angelina Jolie, Lea Seydoux e Rosanna Arquette, passaram a dividir as histórias dos episódios de assédios, dando ainda mais visibilidade ao tema.

A partir dos relatos das atrizes, tornou-se claro que Weinstein focava suas atitudes grotescas em mulheres jovens, que almejavam uma carreira na indústria cinematográfica. O produtor, de acordo com os relatos, usava de um mesmo discurso: as convidava para o seu apartamento fingindo ser algo relacionado ao trabalho, pedia uma aproximação mais intima, e quando elas recusavam, ou eram ameaçadas a terem a carreira destruída, ou ele se dava o direito de violenta-las sexualmente. Entre os casos, a atriz americana Paz de la Huerta afirmou que Weinstein a estuprou duas vezes. O sindicato dos produtores cinematográficos dos Estados Unidos já se posicionou com a expulsão do produtor, afirmando que assédio sexual não será mais tolerado na organização, assim como a Acadêmia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo prêmio Oscar, que expulsou o produtor de seus quadros.

Sendo o pontapé do “Caça aos Assediadores”, Harvey Weinstein é um dos produtores de maior peso na indústria de Hollywood, sendo co-fundador do estúdio The Weinstein Company

Logo após as inúmeras denúncias contra Weinstein, o ator e cantor norte-americano, Anthony Rapp, de 46 anos, um dos primeiros homens a levantar bandeiras a respeito da homossexualidade no circuito teatral da Broadway, se sentiu motivado a trazer à mídia o seu episódio. Quando tinha 14 anos, participou de uma festa no apartamento de Kevin Spacey e, durante a comemoração, foi abordado pelo ator, que aparentava estar alcoolizado, e forçado fisicamente a ter contatos mais íntimos. Em resposta, Spacey deu uma declaração se desculpando pelo ocorrido e alegando que não se lembra do ocorrido, além de utilizar a ocasião para assumir sua homossexualidade. A atitude do ator de ter assumido a sua sexualidade justamente na mesma época em que foi denunciado por Rapp, levantou suspeitas de que o ator estava tentando “encobrir” o ocorrido com a notícia sobre a sua sexualidade.

Em House of Cards, primeira série original da Netflix e um dos carros chefes da gigante de streamingSpacey interpretava Frank Underwood, um político estado-unidense ambicioso, calculista, inteligente, e que utiliza de artimanhas políticas para melhorar a sua imagem, mesmo quando comete crimes ou ações moralmente questionáveis. Desta forma, a vida pessoal do ator pode ser comparada com a de seu personagem, visto que, Spacey tentou contornar o ocorrido com uma resposta que atrai a atenção da mídia, para manter a sua imagem intacta. Contudo, em menos de uma semana oito profissionais que trabalharam na produção de House of Cards relataram a CNN que o ator transformou o set de gravação em um palco de assédio sexual.

O ator foi alvo de outras acusações nas últimas duas semanas, entre elas está a da jornalista Heather Unruh, que anunciou em entrevista coletiva, que Spacey pegou no órgão genital do seu filho, depois de lhe dar bebida alcoólica em 2006. A jornalista afirmou que o seu filho entregou à polícia de Nantucket, nos EUA, evidências do suposto assédio e que uma investigação criminal foi iniciada. O ator Roberto Cavazos também fez acusações contra Kevin, e publicou em sua página do Facebook “parece que a única exigência era ser um homem com menos de 30 anos para que o sr. Spacey sentisse que estava livre para nos tocar”. Os dois se encontraram em Londres, quando o ator de House of Cards era diretor artístico do teatro Old Vic.

Após o depoimento de Cavazos, as investigações começaram no teatro, e de acordo com o jornal inglês The Guardian, o Old Vic recebeu mais 20 testemunhos de comportamento inadequado do ator norte-americano. Em seu tempo no cargo, Spacey ficou à frente do grupo entre 2004 e 2015, sendo que a maioria dos assédios aconteceu antes de 2009. Nick Clarry, presidente da companhia, disse que é inaceitável esse comportamento de qualquer um que trabalhe no Old Vic. O diretor artístico do Teatro, Matthew Warchus, também se pronunciou afirmando que tem uma simpatia muito grande pelas testemunhas que denunciaram Spacey, e completou declarando que todos têm o direito de trabalhar em um ambiente livre de assédio e intimidação.

No filme “Todo Dinheiro do Mundo”, Kevin Spacey (na foto) será removido através de CGI e substituído por Christopher Plummer

Em comunicado oficial, a Netflix rompeu seu contrato com o ator, tirando-o da produção de House of Cards, além de cancelar o lançamento do filme Gore, produzido por Spacey. Anteriormente, no site da Netflix, era mostrado como catálogo principal da série House of Cards a foto de Frank Underwood, agora, a equipe também alterou para a foto da personagem Claire, vivida por Robin Wright. Até decidirem qual será o desfecho de Underwood em House of Cards, as gravações estarão suspensas.

O ator também foi retirado do longa-metragem Todo Dinheiro do Mundo, dirigido por Ridley Scott, sendo substituído por Christopher Plummer. No filme, Kevin Spacey protagonizaria a película vivendo J. Paul Getty, um magnata do petróleo que se recusou a pagar resgate de seu neto sequestrado. Após a recusa os sequestradores enviaram uma suposta orelha do neto à imprensa. A Sony Pictures, estúdio que produz e distribui o longa, retirou o filme do festival anual do Instituto Americano de Cinema em Los Angeles, que aconteceu no dia 16 de novembro, mas manterá o lançamento do filme nos cinemas norte-americanos para dezembro. Depois de todo o período conturbado na carreira e vida pessoal, Kevin Spacey está internado em uma clínica para se tratar.

Repercussões

As denúncias não terminaram com Harvey Weinstein e Kevin Spacey, já que outros casos de assédios foram revelados no início de novembro. Alguns nomes de peso de Hollywood, Dustin Hoffman, Richard Dreyfuss, Ed Westwick e Louis C.K. entraram para a lista. Todos foram acusados e já estão sendo tomadas medidas cabíveis para cada caso. Infelizmente, a cada dia tem sido exposto como esses crimes são comuns em uma indústria cinematográfica, em que mulheres são objetificadas e subordinadas a situações deploráveis para conseguir um reconhecimento, além de que a maioria delas não são escutadas quando resolvem denunciar esses casos. Por exemplo, o galã dos filmes de Tim Burton, Johnny Depp, foi denunciado em 2016 pela ex-companheira por agressão, sendo que, na época, o ator não passou por nenhum repúdio profissional. Mesmo com todas essas notícias, David Yates, o diretor de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald, confirmou a participação de Depp como antagonista do longa que será lançado em 2018. Entretanto, os fãs da saga que expande a franquia Harry Potter nos cinemas estão protestando nas redes sociais pedindo a demissão do ator.

Após 30 anos de silêncio, assegurados por uma indústria que nunca demonstrou espaço e proteção para as vítimas de situações tão agressivas, colocando-as em uma posição de impotência perante o sistema a qual Hollywood é sustentado, Kevin Spacey teve a sua penalidade. Resta esperar e observar se os acontecimentos dos últimos meses significaram uma mudança no encobertamento das situações recentemente denunciadas, uma vez que muitos casos de assédios em Hollywood ainda podem estar ocultos, devido à demora que ganham visibilidade e, principalmente, pela falta de problematização.


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