
Frias e calculistas: cinco vezes em que mulheres assumiram o papel de anti-heroína
Nesta lista de cinco produções, dentre filmes e séries televisivas, trazemos uma lista com personagens femininas fortes e marcantes.
Outro dia, perdida nas muitas opções do catálogo da Netflix, me deparei com uma nova série, produzida pela própria plataforma: A Louva-a-Deus (2017). A sinopse me laçou de primeira – porque produções sobre assassinos em série só tem dois caminhos: ou você abomina ou você é obcecado – e eu, claramente, me enquadro no segundo grupo. Bom, mas o que importa é que essa nova produção da Netflix havia, de fato, me interessado – não que a história me parecesse muito inovadora, mas o que me fez apertar o play foi apenas um artigo: UMA serial killer.
Dos muitos filmes e séries que já consumi sobre o tema, me chamou imediatamente a atenção o fato de que se tratava de uma mulher no papel do criminoso. É curioso como anti-heroínas são bem mais incomuns do que os anti-heróis, né? Enquanto enumero com facilidade personagens aclamados como Walter White, Hannibal Lecter, Dexter Morgan e Tony Soprano, penso que poucas chances foram dadas à figura feminina de se colocar no papel da má-boa-moça.
Mas a verdade é que as mulheres não deixam barato não – as anti-heroínas, além de injetarem aquela necessária dose de adrenalina no espectador, também debatem questões bem fundamentais a respeito do que é ser mulher, de como a sociedade pode ser cruel com a figura feminina e como isso pode afetar brutalmente seu comportamento. Essa lista é pra te convidar a assistir cinco produções em que as mulheres são barra pesada, mas de bom coração.
Kill Bill, Vol. 1 (2003)

O interessante é que os litros e litros de sangue derramados não são absolutamente sem propósito ou somente em nome da ação – o filme também traz à tona questões como estupro, por exemplo: há a clássica cena em que A Noiva está desacordada no hospital e um enfermeiro basicamente vende para outro homem 20 minutos no quarto com a personagem de Thurman, inconsciente. É uma cena indigesta, frívola e absolutamente banal – o enfermeiro dita regras sobre a conduta do homem durante o abuso como se estivesse o instruindo sobre qualquer atividade comum. Felizmente, estamos falando de Beatrix – o desfecho da cena é de descolar as costas do sofá e mostra que de sexo frágil ela não tem nada. Bom, é importante lembrar também que o roteiro de Kill Bill é uma colaboração entre Tarantino e Uma Thurman, o que pode ser uma justificativa bem plausível para que a figura da mulher tenha tanta força, em todos os sentidos, dentro da narrativa.
Millenium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011)

A primeira cena da personagem já diz muito sobre ela: em um ambiente empresarial absolutamente formal, clean e minimalista, dois homens conversam sobre o excelente-mas-excêntrico trabalho de Salander, que logo chega em uma moto, vestida de preto, com visual andrógino, corte de cabelo pouco convencional, e piercings por toda parte. Sua irreverência não se manifesta só na aparência: ao chegar na sala de reunião, os homens a cumprimentam e Lisbeth permanece em absoluto silêncio. Eu poderia passar horas falando sobre como boa parte da complexidade da personagem já se mostra nos primeiros minutos em que aparece em cena, mas deixo vocês com o benefício da descoberta.
O passado de Lisbeth é a linha que desenrola a narrativa e é apresentado em flashbacks, num tom realista que até entendo ser incomum no cinema americano. As cenas são fortes e grotescas – ressalto a do estupro sofrido pela personagem, cometido pelo seu tutor. Sem dúvida, uma das produções americanas que mais me tiraram o conforto diante da tela. É bizarro e desesperador, do jeito que tem que ser, sem nenhum teor apologético ou fetichista.

Bom, mas estamos falando aqui de mulheres que não deixam barato, né? A fragilidade física da personagem nada reflete seu temperamento; sua vingança é fria e calculista, impiedosa e bem cruel, dessas que você vibra com o acontecimento mas questiona o seu nível de sadismo. Esse filme é muito complexo para um só parágrafo. Qualquer dia a gente conversa só sobre ele por aqui. Próxima!
The Sinner (2017)

Nada de novo sob o sol: The Sinner não é lá muito original em termos de roteiro e nem é a melhor mini-série sobre assassinatos inexplicáveis com investigadores estranhos (The Night Of é minha queridinha do momento). O que interessa aqui é como essa fórmula mágica que parece sempre dizer mais do mesmo, dessa vez, veio para dar voz a um tema bem importante. O passado de Cora começa a ser investigado e algumas recordações começam a aparecer na cabeça da protagonista.
É interessante aqui ver como a série se propõe a compreender a mente da personagem desde sua infância, sob a criação rígida de pais religiosos, Cora dividia quarto com uma irmã gravemente doente. A mãe culpava Cora pela doença da filha mais nova e a atormentava das mais variadas formas. No entanto, as irmãs eram muito próximas e descobriram a vida juntas – através das vivências de Cora, já que sua irmã mal se levantava da cama. É interessante acompanhar a personagem de Jessica Biel começando a desvendar o mundo, os prazeres, as decepções e, principalmente, como é complexo, difícil e amedrontador ser mulher no mundo. O desenrolar da narrativa esbarra novamente em questões fundamentais sobre abuso sexual e como ele é catastrófico e devastador para a vítima.
Malévola (2014)
Aqui, a fantasia se aproxima da realidade: Malévola perde a ingenuidade e a doçura precisamente na cena em que seu amante arranca suas asas enquanto dorme. A metáfora é bem clara: Malévola foi violada nos contos de fada assim como mulheres são estupradas na vida real e isso é, novamente, decisivo e fatal no comportamento e na vida da vítima. Além disso, gosto que o filme escolhe desenvolver em primeiro plano o afeto de Malévola com Aurora; confesso que não me lembro como é que isso se desenrola em A Bela Adormecida, mas acho fundamental que a tensão entre as duas principais figuras femininas do filme seja gradativamente suavizada. Isso joga a favor da desmistificação dessa história tosca de rivalidade entre mulheres no cinema, que inevitavelmente acaba refletindo na vida também. E a Angelina Jolie tá ótima no papel, pode assistir.
A Louva-a-Deus (2017)

Precisamos ser sinceros aqui e dizer que não há nada de muito inovador no roteiro – é um excelente True Detective francês. Mesmo que caia em alguns clichês de produções sobre assassinos em série, A Louva-a-Deus, pelo menos, sabe bem como resolver as pontas sem nó, faz excelente uso da linguagem a favor da narrativa, conta com plot twists realmente bons e, olha, as atuações são demais.
A dualidade da anti-heroína aqui funciona perfeitamente: é fácil perceber o lado humano, materno e cuidadoso da mesma mulher que assassinou à sangue frio (e de maneiras bem criativas) 8 homens, que, segundo o julgamento da protagonista, mereciam morrer. O desenvolvimento da relação entre Jeanne e Damien na série é brilhante, é tensa, fria e ao mesmo tempo é calorosa, como quem não consegue (e não quer) negar os laços afetivos que um dia existiram.

Com o avançar da investigação, descobrimos um pouco mais sobre a Louva-a-Deus e seu passado obscuro. Novamente, aqui, os crimes contra a mulher aparecem e provam mais uma vez como a vítima está fadada a um completo desamparo emocional diante de atrocidades cometidas em nome da sensação de poder. É uma série visceral em todos os sentido. Além de cenas pavorosas de assassinatos, é bem forte e impactante acompanhar essa relação conturbada de repulsa e amor entre mãe e filho. Assistam, sério.
NOW WHAT?
Eu tenho algumas teorias de porquê mulheres assumem menos papéis de anti-heróis do que homens – mas isso é papo pra outro dia. O que importa é que, gradativamente, produções como essas têm ganhado cada vez mais destaque e, embora algumas acabem por tropeçar nos bons e velhos clichês do gênero, trazem discussões fundamentais à tona, sacodem a poeira que é empurrada para debaixo do tapete e dão voz à um crime que acontece com uma recorrência assustadora, em silêncio e negação.