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Sob a lona do circo, o show deve continuar. A sociedade do espetáculo se retroalimenta de tendências culturais cientes do seu prazo de validade. Entramos nessa brincadeira como os primeiros pacientes de Freud numa sessão hipnótica. Assumimos o papel de cobaias passivas em experimentos de alto risco, capaz de deixar sequelas para múltiplas gerações. Criamos uma versão daquilo que consumimos, daqueles a quem amamos e das aspirações que cultivamos. Finalmente, criamos uma versão de nós mesmos. Aquela que desesperadamente estampamos enquanto condicionamos nossas curiosidades e desejos a um padrão de comportamento.

Adelaide (Lupita Nyong’o) é uma mulher negra que carrega um segredo, um trauma de infância. Não discute nada com seu marido, Gabe (Winston Duke), ou com seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex). Exibe um olhar assustado, contrastante com a energia bem humorada de seu esposo. Num espaçoso SUV, convenientemente adesivado pela representação da família feliz, os quatro partem em uma viagem à praia, onde ficam numa casa de veraneio. Acompanhados por vizinhos brancos e bem vividos que incluem a família Tyler, cuja mansão possui gerador elétrico e um arrojado sistema operacional, tudo parece ocorrer dentro do esperado. Até que, durante a noite, invasores cercam a casa e aprisionam Adelaide e sua família. Os responsáveis? “Somos nós”, exclama o pequeno Jason.

https://www.youtube.com/watch?v=fQ19DupGfzk&t=46s

Produzido, escrito e dirigido por Jordan Peele, Nós se apropria rapidamente de elementos de suspense para encarnar uma corajosa alegoria sobre a atual sociedade norte-americana. A trilha chamativa de Michael Abels é eficiente ao explorar timbres industriais e trabalhar melodias diegéticas, ressignificando motifs de cenas de perseguição e beats de gangsta rap de modo inédito e simultâneo. Lupita Nyong’o, em um papel extremamente complexo, atribui a dose correta de profundidade à sua personagem, sem soar caricata ou subjetiva demais. O design de produção de Ruth de Jong é funcional ao situar nossos personagens em lugares desconfortáveis, com menção especial aos espaços dedicados ao clímax do longa: uma mistura inusitada envolvendo árvores, espelhos, corredores de mármore, dormitórios macabros e um saguão de metrô.

Precedido por uma curiosa anotação sobre esgotos e linhas de trem abandonadas, chegamos a uma espécie de prólogo, situado em 1986. A principal indicação temporal, além da legenda óbvia, é a exibição de anúncios datados numa TV de tubos. Há uma atenção especial sobre a campanha “Hands Across America”, em que milhões de americanos se deram as mãos formando uma corrente em várias cidades dos Estados Unidos. A proposta serviu para levantar fundos e reuniu muitos artistas e figuras públicas relevantes da década. Entre elas, Michael Jackson, que também inspira a camisa recém adquirida da então garotinha Adelaide. Uma sensação de abandono conduz a menina para uma tenda e seu letreiro chamativo: “find yourself”. A descoberta se revela epifânica do modo mais enigmático possível. Seguimos para os dias atuais.

Pequenos flashbacks nos trazem de volta àquela estranha sequência. Queremos saber mais, mas parece que não temos esse direito. Rapidamente, o filme parte do ponto de virada para a ação desenfreada. Pistas bastante sutis abrem gradualmente os contornos psicológicos da protagonista, algo fundamental para o sucesso da recompensa que receberemos adiante. Novamente, reservo meus elogios ao trabalho de Lupita Nyong’o, que demonstra um controle absoluto sobre o desenvolvimento de sua personagem (bem como de sua versão paralela) e acaba causando um delicioso estranhamento no espectador.

O fatídico momento em que surgem as versões paralelas de cada membro da família causa um misto de medo e mal-estar. Algo sabiamente balanceado por alívios cômicos espontâneos que só não beiram o absurdo por serem alinhadas com o estilo dinâmico e imprevisível do diretor (impossível não rir da referência inesperada ao N.W.A). Alguns momentos parecem não conversar diretamente com a trama (ou tomam tempo demais), como quando Gabe enfrenta seu “duplo” em uma lancha recém-adquirida. A cena é bem executada, porém dispersa a tensão de um outro ótimo momento (que é Zora brincando de “pega-pega” com a sua versão macabra). Duplos de outros personagens e núcleos familiares vão se revelando, e o que parecia ser uma versão de “Funny Games”, do Michael Haneke, para o BET Awards se expande para um apocalipse zumbi do sonho americano.

País que investiu um século inteiro em difundir valores como os de liberdade, altruísmo e democracia, os Estados Unidos encabeçam um alvo preferencial de Peele. As mesmas brincadeiras com as cores da bandeira americana vistas em Get Out são percebidas aqui. Uma insistência com o número 11 é anunciada na forma de pregações de um versículo bíblico, pincelada pela exibição do World Trade Center, reforçada pelos algarismos de um relógio e até mesmo levantada a partir de um plano-detalhe sobre as frestas de uma escada rolante ensanguentada (remetendo também às listras vermelhas da famigerada flâmula). Uma rima interessante com a imagem de pessoas de mãos dadas que marcaram o “Hands Across America” vai de encontro às representações nos cortes de papel vermelho feitos pela versão paralela de Adelaide. Frutos de uma negação intermitente e desesperada à solidão predestinada.

Nós é um exercício sobre os ícones que caracterizam o sentimento de se pertencer a uma nação. Um ensaio conflitante sobre a ilusão e a necessidade de se reproduzir valores engaiolados numa determinada parcela do tempo em que vivemos. Enquanto não encararmos e avaliarmos diretamente aquilo que somos e o que propagamos, novas versões descrentes e amarguradas podem despertar no consciente coletivo. As soluções hipnóticas do escapismo ambulatório sempre estarão lá, mas até quando serão suficientes?

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