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Crítica: “Duas Rainhas”

Nas masmorras em que Mary Stuart fora sentenciada, velas acesas revelam caminhos alternativos. O medo do desconhecido parece coisa de homem, de macho, de quem nunca menstruou ou enfrentou a dor de um parto. Do prólogo ao desfecho, dedos masculinos agem prontamente para apagar a luz e decapitar ruídos. Sob a lente do século XXI, acompanhamos a ressurgência de um legado de transformação na sociedade britânica. Não é preciso muito esforço para perceber seus ecos em tempos de intolerância, obscurantismo e polarização política.

Após enviuvar-se de François, com quem tivera um casamento arranjado, Mary (Saoirse Ronan) deixa a França e retorna à Escócia. Como herdeira legítima, ela clama pelo trono da Inglaterra, em vigência de sua prima Elizabeth (Margot Robbie). Conspirações da sociedade inglesa estimulam um crescente desacordo, embutindo pautas religiosas e morais que desestabilizam um cenário de mudança inevitável. Duas Rainhas é um filme sobre uma história que se passa em meados do século XVI. Adaptado por Beau Willimon (que trabalhou em House of Cards) a partir da biografia escrita pelo historiador John Guy, a obra é a primeira incursão cinematográfica da britânica Josie Rourke, detentora de uma bem sucedida carreira no teatro. Mesmo com problemas de ritmo e dificuldades de demarcação espaço-temporal na narrativa, sua estréia acaba se revelando uma poderosa ferramenta para discutir papéis sociais e hierarquias.

Um pouco de humor é necessário quando se vive em tempos tão sombrios. Nesse aspecto, a atuação de Saoirse Ronan, cujo talento não é novidade, é bastante competente. Sua personagem vive sucessivos impasses enquanto embarca numa trajetória de ascensão ao poder. Seu comportamento irônico e suas vestimentas ousadas refletem uma percepção onisciente das situações que a envolvem, o que alia fidedignamente o espectador às pretensões artísticas de Rourke. Já Margot Robbie encarna Elizabeth como uma personagem encarcerada pelos excessos que a sucumbem física e moralmente. Nossa primeira visão é a de uma personagem fragmentada pelos polígonos de um vitral, exibindo um olhar sem vida. Não há muito espaço para sorrisos, algo que a atriz (portadora de notável presença cômica) contorna bem em situações que abordam a infertilidade, a varíola e a composição estética de uma biografia recontada inúmeras vezes ao longo dos anos.

De início, Duas Rainhas parece apostar em paralelismos entre as narrativas de Mary e Elizabeth como muleta narrativa. Algo que o roteiro prontamente descarta quando somos apresentados ao Lord Darnley (Jack Lowden), encaminhado à Mary para ser seu segundo marido pela própria Elizabeth e seu conselheiro vivido por Guy Pearce. O foco passa a ser a relação entre Mary e Darnley, envolvendo especialmente relações extraconjugais por parte deste e o efeito do casamento como instrumento de acomodação de Mary às terras escocesas.

Embora bem retratada, a relação entre Darnley e Mary, diferente do que o roteiro espera, não é capaz de sustentar todos os contornos dramáticos da trama. A homossexualidade do confidente italiano de Mary, David Rizzio (Ismael Cruz Córdova, um porto-riquenho cujo casting, por si só, é um comentário político) desperta interesse realçado não só pela época retratada – estamos praticamente no auge da reforma protestante – como também pelo papel do personagem no desenvolvimento da protagonista. Embora com pouco tempo de tela, seu potencial dramático é escancarado em uma sequência fulminante que serve também como o ponto de virada entre o segundo e o terceiro ato narrativos.

Outra questão apresentada no filme e estranhamente trabalhada no roteiro de Willimon são as implicações religiosas no cenário político. As cenas que envolvem o clérigo John Knox (David Tennant) parecem não conversar com as demais situações representadas. De papel fundamental na consolidação da monarquia britânica, o protestantismo é retratado como um empecilho superficial e não há sugestões memoráveis sobre seu verdadeiro impacto no destino da protagonista. Parece haver aqui uma tentativa mal executada de expor as ameaças contemporâneas do fundamentalismo em uma contextualização anacrônica e desengonçada.

Para os apreciadores de uma boa reconstrução de época, Duas Rainhas oferece o que há de melhor nos departamentos de ambientação e figurino. Alexandra Byrne, figurinista que já havia trabalhado nos filmes anteriores de Elizabeth, desenvolve “o outro lado” da história com tons mais escuros ou desbotados, sem deixar de caracterizar sua nova protagonista como uma bandeira ambulante da nação (ou nações) que representa. Em contrapartida, o design de produção, mesmo que extravagante, carece de maior competência quando precisamos nos direcionar espacialmente. Muitos cenários se parecem e isso contribui negativamente para a progressão narrativa. A fotografia de John Mathieson e a trilha de Max Richter são de importância fundamental para simbolizar emoções, como os feixes de luz em uma cena de parto ou as perturbações melódicas que antecedem intrigas.

Como um trabalho de contemplação histórica, Duas Rainhas serve de ponto de partida para problematizar discriminações e desigualdades intermitentes. Não sentimos que há de fato um avanço na discussão, mas é um momento de colocar as coisas na mesa e repensar nossos papéis como replicadores de informação e comportamento. Como no clímax que envolve um desconfortável jogo cênico entre as duas rainhas do título, é possível perceber dilemas contemporâneos que nos fazem aturar a realidade enquanto postergamos idealizações. Assim como a unificação promovida pela coroação do príncipe James, a mudança, cedo ou tarde, acontecerá. Resta saber como, de fato, contribuímos para suas implicações em gerações futuras.

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