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"Jogador Nº 1" é eficiente e divertido, entregando um filme cheio de easter-eggs e feito especialmente para os mais ávidos consumidores da cultura pop.

Videogames e redes sociais compõem uma fração de mídias que podemos considerar como fontes de escapismo da sociedade contemporânea. A realidade virtual já é uma realidade acessível. Aqueles aparelhos binoculares que pareciam presos ao imaginário da ficção científica pré-globalização podem se tornar tão comuns quanto consoles de Atari já foram um dia. Considerando o que tratamos como prioridade e o que tratamos como opção, o que podemos prever de um futuro próximo? Quando escapar (ou apenas sobreviver) obstrui qualquer tentativa de resolução, é necessário acionar o alerta. Procurar, no fundo de nossas lembranças e no cerne de nossas relações, as chaves para transmitir algum legado de esperança.

Em 2045, cidades como Columbus, Ohio se resumem a casas empilhadas em torno de grandes corporações. A vida de Wade Watts (Tye Sheridan) parece muito mais interessante dentro do OASIS: um sistema de realidade virtual capaz de reunir qualquer artefato da cultura pop já inventado. Além de assumir a identidade de Perzival, é ali onde Wade participa de competições, movimenta moedas virtuais e possui suas melhores amizades. Desde a morte de James Halliday (Mark Rylance), inventor da plataforma, existe no sistema um easter egg, capaz de transferir toda a sua gigantesca herança a quem o encontrar. Motivação que move não só o nosso herói, como também a empresa IOI, mantida pelo ganancioso Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn).

O jovem protagonista é marcado pela ausência de uma figura paterna e vive com a tia, que costuma dar azar nos relacionamentos. Sua família de verdade é o clã do qual faz parte, incluindo os avatares Sho (Philip Zao), Daito (Win Morisaki) e seu melhor amigo Aech (Lena Waithe). Ernest Cline, autor da obra original e corroteirista ao lado de Zak Penn, são claramente fascinados pela cultura dos games (bem como seus reflexos) e trabalham Wade como um sujeito que sente prazer indiscutível em fazer parte daquele universo metafictício. Dentre as inúmeras ambições de Jogador Nº 1, se destaca a de representar uma geração cujo perfil permanece volúvel. Antes mesmo do filme se apresentar, um prólogo nos coloca a par do cotidiano de Wade e do que é o OASIS, sem delongas para o bombardeio de referências que oxigenam a produção.

Apesar de suas últimas incursões mais discretas, Steven Spielberg sempre foi um mestre na concepção do filme como produto. Podemos encontrar em sua própria trajetória três eventos de ressignificação do termo blockbuster: com Tubarão, em 1975; E.T. – O Extraterrestre, em 1982 e Jurassic Park, em 1993. Todos líderes de bilheteria em seus respectivos anos e precursores de tendências que são seguidas até hoje na indústria. Sua carreira sempre intercalou filmes  de grande apelo ao público com obras politizadas e que chamam atenção para questões relevantes como A Cor Púrpura (1985), A Lista de Schindler (1993) e os recentes Ponte dos Espiões (2015) e The Post (2017). Em sua mais nova empreitada, Jogador Nº 1, arrisco assumir que o diretor almeja uma síntese atualizada dessa percepção ambígua em sua filmografia, obtendo alguns sucessos pontuais que a limitada narrativa permite.

A ideia de colocar um easter egg (pistas e brincadeiras ocultas que existem nos jogos e outras mídias) como elemento condutor é interessante. Nada novo… o próprio filme admite a inspiração no “rosebud” de Cidadão Kane (1941). No caso, esse mistério reside no paradeiro de três chaves que abrirão o tesouro guardado por Anorak, avatar imortal de James Halliday. Cada chave escondida ganha seu respectivo ato. Acompanhamos Perzival e seu clã nas aventuras proporcionadas pela tecnologia do OASIS e não tardamos a nos sentir parte daquela equipe também. Uma habilidosa competidora que atende por Art3mis (Olivia Cooke) passa a fazer parte do time e desperta as emoções do protagonista, sentimento que em determinada passagem é divertidamente cunhado como cybercrush.

É difícil conceder méritos específicos a uma obra com tamanha capacidade de imersão, mas destaco aqui toda a equipe de efeitos visuais, bem como o design de produção encabeçado por Adam Stockhausen. Este último colaborou com Spielberg em Ponte dos Espiões e recebeu o Oscar por O Grande Hotel Budapeste (2014). Ou seja, dizer que o cara é bom é eufemismo. Se ficamos vidrados com as ambientações, tentando adivinhar de onde vem tal personagem ou uma dada localização, isso se deve bastante a inventividade corriqueira do designer.

Os contrastes entre os mundos real e virtual podem ser verificados não só pelos cenários, como também pela fotografia de Janusz Kaminski. Colaborador habitual de Spielberg, sua habilidade em realçar planos abertos com focos intensos de luz é aproveitada com sabedoria, quando percebemos nosso herói raciocinando a partir das dicas encontradas no game. O mundo virtual é colorido e repleto de lens flares e demais pirotecnias, enquanto o mundo real é excessivamente monocromático. Ao longo da projeção, quando descobrimos mais a respeito dos indivíduos por trás dos avatares que acompanham o de Wade, uma adoção de cores mais quentes e convidativas sugere a descoberta de novas possibilidades para recolorir toda aquela distopia. Nos momentos de ação, a movimentação de câmera impressiona; Spielberg e Kaminski são hábeis em posicionar o espectador na situação, ao mesmo tempo que emprega seus planos-sequência típicos em cenas visualmente ricas como a corrida inicial, a boate virtual e a batalha final.

Quanto à narrativa, Jogador Nº 1 peca em não desenvolver um vilão de maneira satisfatória. Por mais que Ben Mendelsohn confira carisma e energia à Nolan Sorrento, suas motivações são rasas e a corporação que o personagem personifica não passa de uma figura de linguagem óbvia para o monopólio e a burocratização de uma indústria. Os diálogos são, na maioria, alicerces para referências gratuitas ou ponderações emotivas, ao passo que o clímax sofre um desgaste assustador na medida em que os personagens sempre demonstram um bom domínio da situação. Esses aspectos não chegam a estragar a experiência, porém caracterizam descuidos de roteiro prejudiciais à sua longevidade.

Por outro lado, como retrato de uma civilização escapista marcada pelo pessimismo e pela concentração de renda, Jogador Nº 1 é eficiente. Diferente do que seus personagens buscam, sua moral passa longe de ser um easter egg. Na figura de um divertido e vívido Mark Rylance, somos convencidos a escutar uma mensagem que, mesmo repetitiva e saudosista, surge sempre necessária. É na vida real que podemos aproveitar uma refeição decente. É na vida real que sofremos por alguém e dependemos de um ombro amigo. Não há problema em ter nossas cavernas alegóricas por aí, mas é no trampolim da realidade que encontramos pistas para aproveitar a vida, reconhecer problemas e saber o que mudar.

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