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"Inferninho" combina uma atmosfera expressionista e um senso de surrealismo para falar sobre a marginalização na sociedade.

O bar que intitula o filme Inferninho (2018), de Pedro Diogenes e Guto Parente, é uma antítese recortada de um purgatório onde os distintos e desolados clientes parecem aguardar por improváveis perspectivas, enquanto bebem cerveja de litrão e escutam a performance da cantora brega Luizianne (Samya de Lavor). Sentados nas mesas de metal do bar estão um Mickey encardido, um Wolverine fora de forma, uma Mulher Maravilha não-binária etc.

A primeira virada do filme começa quando a dona do bar, a trans-nipônica Deusimar (Yuri Yamamoto), se apaixona pela figura recém-chegada do Marinheiro Jarbas (Demick Lopes). Somadas ao romance presente no filme, existem sub-tramas paralelas envolvendo a desapropriação do bar, o passado de Jarbas e conflitos pessoais da própria Deusimar, que acabam nos apresentando um filme recheado de subjetividades poéticas e reflexões sociais, embaladas em uma estética disforme e muitas vezes remetendo ao onirismo.

https://www.youtube.com/watch?v=Fc9sDmeoVCE

Inferninho é um filme que representa a afirmação da parceria da Alumbramento com o grupo de teatro cearense Bagaceira. A criação coletiva bebe de referências marginais e antropofágicas, como obras das figuras de Joaquim Pedro de Andrade e Rogério Sganzerla.

O bar Inferninho surge como um éden atemporal e uma espécie de prisão paradoxal para as diversas figuras marginalizadas. O isolamento imposto e diluído na rotina dos clientes do bar, evidencia o papel de resistência e de acolhimento do local. Os corpos velhos, andrógenos e desleixados dos personagens se relacionam com as paredes mal pintadas e com a estética abandonada do bar. Inferninho é o balizamento do resto.

Pôster do filme. (Crédito: Embaúba Filmes)

O expressionismo presente na construção artística do filme faz com que a construção cênica salte em uma textura característica e adquira propriedades narrativas indiciais. A sujeira da imagem, proporcionada por equipamentos ópticos mais precários e uma iluminação baixa, reforçam a riqueza do filme em evidenciar o cru.

A qualidade do trabalho de Yuri Yamamoto enquanto Deusimar é indiscutível, mas é necessário pontuar que o casting de um ator cisgênero para representar uma personagem trans tira a oportunidade que poderia ser dada a um profissional que vive uma marginalização na sociedade em diversas esferas e, tendo a arte um papel como espaço e instrumento de valorização da diversidade, escalar um ator trans é de importância ainda mais expressiva em um filme como Inferninho. Apesar dessa problemática, a sensibilidade na construção de Deusimar enquanto mulher regenerada da figura de Denilson, é sempre presente. Yuri traz feminilidade à personagem, que não teve culpa de nascer equivocadamente em um gênero a que nunca pertenceu.

O jogo cênico entre Deusimar e o restante do elenco evidencia a relação identitária conflituosa de uma personagem que se vê presa em um contexto que não escolheu. A véspera da tentativa do suicídio de Deusimar, traz no monólogo do Coelho (Rafael Martins) um dos momentos mais bonitos do filme, tendo uma fala que representa uma tentativa de salvar a dona do bar e de bradar pela resistência dos desajustados enquanto família.

Deusimar acaba conhecendo o mundo externo. A personagem desliza em um macrocosmo que é composto por projeções em chroma key, sendo essas mais algumas pinceladas narrativas rústicas, que acabam por reforçar a estética tecnobrega do filme. A falta de realidade do resto do mundo e o maneirismo em sua representação, reaproximam a personagem do seu próprio inferno, seu Inferninho.

Ao voltar para o bar, agora usando um quimono japonês, Deusimar não é reconhecida. A personagem chega no balcão, pede um Campari e é atendida pelo antigo affair, Jarbas. A equidistância oposta na vida dos dois personagens sublinha a incongruência inicial em que estão inseridos.

Sobretudo, Inferninho fantasia com a melancolia em um ouroboros que tem Deusimar como protagonista. A personagem embarca em uma remontagem do próprio contexto, ressignificando sua presença e reforçando o que sempre foi: mais uma uma mulher no fim do mundo, como canta Elza Soares.

 

“A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida”

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