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Na Mise-En-Scène / “Personalidades refletidas em The Great”

Estes são momentos em que agradeço o espaço desta coluna para falar tudo que eu preciso sobre produtos audiovisuais que me hipnotizam, não só pela direção de arte mas pelo conjunto da obra como um todo. O texto de hoje é uma análise e indicação, simultaneamente. Vamos ao que interessa!

Quem acompanha a guerra fria dos serviços de streaming por produções originais de alto nível sabe que a Hulu não está de brincadeira neste campo de batalha. São muitos os títulos aclamados pela crítica, como Little Fires Everywhere, The Act, Castle Rock, Catch 22 e seu grande sucesso: The Handmaid’s Tale. O canal tem investido cada vez mais em produções em formato seriado que se aproximam claramente da linguagem cinematográfica, com visual arrojado, personagens complexos, bem escritos e recursos estéticos incríveis. Essa semana, dei início a uma aventura que já estava em minha lista há alguns meses e minhas expectativas, que eram altas, não só foram cumpridas como superadas.

The Great, nova série original Hulu criada por Tony McNamara (roteirista de A Favorita, de 2018), conta a história da ascensão de Catherine “The Great” ao poder, na Rússia do século XVIII. Elle Fanning é quem dá vida à imperatriz na produção, em um elenco que ainda conta com Nicholas Hoult no papel de Peter III.

Com um humor ácido, tom satírico, críticas traçadas a partir da normalização do grotesco e personagens excêntricos, o pontapé inicial da série acompanha o casamento de Catherine e Peter, que já é motivo de frustração para a jovem governante nas primeiras 24 horas do matrimônio. Sua insatisfação com a estupidez e violência do governo do Imperador faz Catherine, que era polonesa, começar a arquitetar um plano para dar um golpe de Estado e, enfim, governar a Rússia sob princípios mais humanos e ideais iluministas, que ganharam espaço na Europa na época.

Na primeira cena da série, temos um plano de Catherine se divertindo em um balanço, contando para outra jovem que se casaria com o imperador da Rússia com muito entusiasmo, quase num tom “princesas da Disney“. As cordas do balanço estão decoradas com flores enroladas e a personagem usa um vestido amarelo pastel, de aparência simples e com cortes retos. Todos esses elementos atribuem à essa cena um caráter latente de ingenuidade, doçura, inocência e pureza. O amarelo traz essa energia intensa da juventude, vitalidade, alegria e entusiasmo, características nítidas de Catherine neste primeiro momento.

Isso é tudo que temos de apresentação da personagem, que logo em seguida já é retratada em uma carruagem, chegando à Corte da realeza russa. Arte também é simbologia e a cena seguinte é emblemática – Catherine segura um único ramo de planta em suas mãos que, segundo ela, levou para presentear o Imperador com o símbolo do amor e afeto que sempre existirá entre os dois. No entanto, não esperava que o homem que a aguardava era infantil, de comportamento chulo, insensível e grotesco. O contraste da delicadeza do gesto, da planta e da própria personagem com a postura do imperador é simplesmente desconcertante. A partir daqui, a narrativa se desenvolve quase que toda no território do palácio de inverno e esse é o local do primeiro mergulho profundo dessa análise.

Em The Great, Tony McNamara opta por uma abordagem autoral à história de Catherine com toques irreverentes e modernos na direção e roteiro e essa energia deu um pouco mais de liberdade para a arte, que se preocupa muito mais em criar um humor para a narrativa do que com precisão história, apesar de o ambiente interno da Corte ser fiel ao período histórico, de um modo geral. É curioso perceber como o contraste entre Imperatriz e Imperador acontece de maneira clara no design de produção, da cenografia ao figurino.

Enquanto Peter está sempre vestido com tons escuros como cinza, bordô e preto, Catherine veste tons claros de azul, verde e rosa – um símbolo dessa “ingenuidade real”. É curioso como o figurino, ainda que tenha um aspecto de realeza muito evidente, flerta com o conforto – os personagens parecem à vontade, a roupa não é um impedimento para o desfrute dos prazeres da vida.

Os aposentos do Imperador parecem um mausoléu – tons extremamente escuros, com muita informação, chega a ser até confuso. O quarto de Catherine, apesar de ser predominantemente azul pastel e tons claros, possui padrões em chinoiserie (estampas que imitam ilustrações tipicamente orientais) que impedem que o quarto tenha de fato uma sensação de aconchego, deixando o ambiente levemente confuso e sufocante.

A diferença entre o estilo dos dois quartos em questão nos leva a um outro ponto – na verdade, todos os cômodos do palácio são absolutamente distintos um do outro. Consegui identificar duas razões para essa escolha: a primeira é para dar impressão de grandeza, como se o palácio fosse tão gigantesco que consegue comportar estilos completamente diferentes dentro de uma mesma construção. Isso também perturba um pouco o senso de espaço do espectador, contribuindo para o tom alucinante e esquisito da série.

Outro motivo é que, na realidade, apesar de todos conviverem em uma suposta harmonia (que é fingida para a manutenção dos privilégios), ninguém se conhece com intimidade – e os interiores dos aposentos de cada morador da corte refletem as personalidades diferentes e ocultas de cada um deles.

Por causa disso, em um primeiro momento, fiquei com a impressão de um trabalho sem unidade visual, mas a verdade é que é um trabalho de gênia (sim, design de produção feito por uma mulher <3). Todos os personagens são absolutamente bem escritos, com arcos dramáticos super definidos e trabalhados de maneira primorosa. Isso faz com que cada um deles tenha uma personalidade muito marcante e o design de produção de The Great é pensado para reforçar e caber dentro das particularidades de cada um deles.

Algo que chama a atenção também são alguns detalhes que divergem da estética europeia do século XVIII e marcam a assinatura russa – o figurino, que abusa de texturas felpudas como golas e mangas de pêlo, objetos com arabescos que lembram os padrões dos ovos Fabergé, cabeças empalhadas de alces e outros animais em paredes de madeira que dão um aspecto escurecido e frívolo para a imagem reforçando o clima frio do local.

Apesar das referências claras à Rússia, esse não é um produto preocupado com precisão histórica, então a diferenciação do padrão europeu é, na verdade, através da construção de um mundo muito específico – o universo de The Great. A execução da criação de uma visão particular do século XVIII é brilhantemente executada por Francesca di Mottola, que além de conceber um projeto de arte complexo, robusto, detalhista e muito bonito, tem uma bagagem cultural – a artista é brasileira (ponto para nós!) mas cresceu na Europa, estudando no Reino Unido e na Itália. Certamente, essa mistura cultural não poderia ser mais adequada para criar uma releitura tão particular e única da história da governante feminina que ocupou o mais alto cargo da Rússia em toda a história.

The Great entrega um design opulento, divertido e conciso, em uma abordagem muito original do período histórico que é largamente retratado em cinema e televisão. As atuações são imperdíveis – Elle Fanning transita perfeitamente entre a inocência da juventude e a confiança de uma imperatriz, Nicholas Hoult é tão convincente no papel de governante ignorante, infantil e tosco que cheguei a me perguntar se não existem traços da personalidade do ator que são de fato alinhados com a do personagem. Todo o elenco é uma surpresa positiva e com um roteiro tão fundamentado no desenvolvimento de personagens complexos, as interpretações garantem um produto final super redondinho e envolvente.

É um must watch!

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