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Um dos estilos cinematográficos mais interessante, o Filme Noir segue influenciando a produção e a estética contemporânea.

Ao longo de toda a história do cinema, alguns movimentos criaram força no que diz respeito à estética da imagem e se tornaram uma estilística definida. Mais tarde, essas obras com forte apelo plástico acabaram servindo como referências para trabalhos executados até nos dias atuais. O Expressionismo Alemão, por exemplo, permeia o trabalho de Tim Burton do começo ao fim. O formalismo russo influenciou a obra de Stanley Kubrick e até mesmo de Glauber Rocha, com as novas técnicas de montagem e imagens sensoriais. O surrealismo de Luis Buñuel que atravessa os filmes de Pedro Almodóvar e David Lynch e por aí vai.

Esses movimentos, além de possuírem uma linha estética forte e facilmente identificável, possuem também temáticas comuns. Usando os exemplos já citados, o formalismo russo procura abordar a revolução como ponto central da narrativa, além de romper com a ideia de um herói único e valorizar a ação coletiva. O Expressionismo Alemão aparece com figuras caricatas, místicas, abordando questões psicológicas com mais profundidade. Ou a Nouvelle Vague, movimento que propunha narrativas bem fragmentadas, experimentais, trazendo para o foco personagens marginais, com forte presença de um narrador e que acabou sendo fundamental para a noção de cinema de autor que temos hoje.

Todo esse parágrafo introdutório revisitando períodos da história do cinema é, na verdade, uma evidência de que essas escolas não morrem. Embora sejam sim referentes a um período, até pelo contexto histórico que necessariamente influencia no nascimento de um movimento artístico, elas se perpetuam através de obras contemporâneas que ressignificam, adaptam ou fazem uso dos recursos estéticos em uma nova lógica de produção. A estética noir, por exemplo, foi um marco no cinema de estilo que influenciou o trabalho de diretores lendários, como Martin Scorsese, Quentin Tarantino, David Fincher e irmãos Coen.

Alguns dos meus autores e filmes preferidos são inspirados na estética noir e, por isso, hoje, escolhi fazer um texto em um formato um pouco diferente pra falar sobre o movimento neo-noir – os filmes contemporâneos que aproveitam o legado da estética da década de 30. No entanto, antes de começar a falar do novo, precisa-se falar sobre o clássico.

 

O FILME NOIR

Um importante crítico francês nos anos 40 foi o primeiro a identificar uma estética comum entre produções da época e cunhou o termo Filme noir (filme preto). O movimento começou a aparecer após a grande crise de 1929, nos Estados Unidos – quando a recessão econômica e o clima hostil geravam um ambiente propício para o crime. Além disso, com a grave crise econômica, os estúdios precisavam pensar em formas de economizar e racionar os custos das produções – nesse sentido, o estilo noir foi extremamente conveniente, já que a maior característica do estilo é a pouca luz, que além de reduzir gastos com energia, economiza em cenografia, ambientação, figurino, equipamentos e por aí vai.

O estilo do Filme Noir também opta pela simplicidade – não possui muitos efeitos especiais, planos sequência são marcantes, câmera na mão também é um forte elemento estético. O Noir é um ótimo exemplo de estilo que nasceu não só pelo contexto histórico de desânimo e aumento da criminalidade pela crise econômica, mas também como uma forma de perpetuar e fazer sobreviver a arte apesar das condições pouco favoráveis. O que faz esse estilo influenciar a estética de inúmeros diretores de cinema até hoje é, principalmente, a capacidade que o noir tem de ambientar um clima de tensão, de mostrar ações ilícitas que acontecem na calada da noite, o submundo, os personagens misteriosos e envolventes, as incoerências humanas, o anti-herói. Pois é, não foi o Scorsese que inventou isso com Taxi Driver.

Apesar de muitos diretores contemporâneos e aclamados utilizarem a estilística noir em seus filmes, escolhi falar sobre Nicolas Winding Refn, um autor realmente novo que faz um trabalho brilhante de adaptação do estilo da década de 30 para uma estética bem autoral, moderna e que eu amo. Para isso, vou elencar 4 pontos principais do estilo Noir que são ressignificados nos filmes de Winding Refn.

 

LUZ E SOMBRA

Fortemente influenciados pelo expressionismo alemão e pelo estilo barroco, os filmes Noir, na intenção de criar essa ambientação gangstar e oculta (além da necessidade de reduzir a conta de luz do estúdio), fazem forte uso do jogo de luz e sombra. Uma imagem que ajuda bastante a entender como isso se dá são aquelas clássicas cenas de interrogatório, em que se está numa sala extremamente escura, com apenas um pendente sobre o personagem a ser questionado, iluminando nada além do ator e a mesa. No Noir, nota-se também grandes sombras desproporcionais em cena – pontos focais de luz que alongam a sombra de persianas, barras de cadeia e causam esse estranhamento de escalas, característico do expressionismo.

 

Nicolas Winding Refn, em sua obra, adapta o contraste da oposição entre luz e sombra através do uso de cores. Em Demônio de Neon (2016), por exemplo, é perceptível que o jogo de claro e escuro, na verdade, se dá através de cores claras e escuras. O uso de contrastes entre rosa e roxo, amarelo e rosa, vermelho e preto possuem o mesmo efeito prático de preto e branco. Em Drive (2011), também, um dos elementos mais marcantes do filme é a constante presença de azul em contraste com amarelo, proporcionando essa mesma dualidade. Considero brilhante essa ressignificação do contraste tão marcante do estilo noir, adaptando para uma realidade onde a tecnologia nos permite ver cores cada vez mais vivas e fazendo com que isso colabore para a estratégia da narrativa, num contexto contemporâneo.

 

MAD CITY

Algo que diz respeito tanto à temática quanto à estética do filme noir é a cidade como esse ambiente hostil, perigoso, sujo e opressor. Com a crise de 29, essa era, de fato, a impressão que se passou a ter sobre as metrópoles, com o aumento dos índices de criminalidade, prostituição e violência. Além disso, o urbano é retratado também como um prato cheio para corromper o ser humano e arrastá-lo para o mundo do crime, drogas e atividades ilegais.

Essa descrição acima poderia até ser a sinopse de Drive, um dos principais filmes de Nicolas Winding Refn. Ryan Gosling encarna um dublê de cenas automotivas de Hollywood que usa sua habilidade no volante para ser piloto de fuga de assaltos. O personagem de Gosling evidencia exatamente como o contexto perigoso da cidade é capaz de corromper pessoas sensíveis e com senso de justiça. Apesar da apatia do protagonista, é possível identificar muitos momentos de humanidade no personagem – fica fácil perceber como o motorista, na verdade, enrijeceu sua atitude em nome daquilo que ele vive no espaço da cidade.

Em Demônio de Neon, essa lógica também existe mas recortada – Refn, ao invés de falar sobre a podridão das metrópoles, opta por focar no lado obscuro e feroz do mundo da moda. O começo do filme já deixa isso bem claro: Jesse, a jovem modelo, chega em seu quarto no motel e encontra um puma em seus aposentos. Apesar de ser tratado com uma estranha naturalidade pelo funcionário do estabelecimento, a figura do felino ali é uma metáfora para a crueldade e dimensão animalesca do que ela está se propondo a viver dentro do universo da moda.

 

FEMME FATALES E ANTI-HERÓIS

As primeiras vezes em que nos apaixonamos por personagens de caráter duvidoso foi no estilo noir. Os anti-heróis apareceram nesse movimento, carregando na personalidade essa aceitação de saber que todos nós possuímos um lado obscuro e oculto. Os valores tradicionais, antes personificados em personagens heroicos e justos, deram lugar para a celebração da malandragem, da justiça feita com as próprias mãos e do uso da sensualidade para persuadir ou alcançar um objetivo.

É interessante pensar em como o contraste da fotografia entre claro e escuro se manifesta também nos personagens desses filmes. Ryan Gosling, em Drive, carrega completamente essa oposição entre cores frias e quentes proposta pela luz do filme. É bem bonito pensar que a estética noir e neo-noir é muito simples mas extremamente concisa, alinhada e com um propósito claro.

Aqui é legal também pensar em como o figurino contribui para essa construção dos personagens. No noir da década de 40, os sobretudos e chapéus adicionavam camadas, dificultavam o acesso ao centro daquela pessoa, escondiam a intenção e a personalidade daqueles homens misteriosos. As femme fatale, no entanto, subvertiam a noção de mulheres comportadas e carregavam sempre uma dose de sensualidade no figurino. Fendas, roupas justas marcando as curvas do corpo e salto são elementos marcantes do guarda-roupa das femme fatale.

 

QUEBRA DA FORMA

O “desequilíbrio” formal é algo muito recorrente em filmes noir – o uso do chamado ângulo holandês, com a câmera levemente inclinada, causava essa quebra com o rigor do cinema clássico da época. Além disso, a composição dos elementos costumava ser assimétrica e com escalas confusas, influência direta da estética do expressionismo alemão no estilo.

Acho que se tem um filme com escalas confusas, ângulos malucos, composições estranhíssimas e subversivas, é Demônio de Neon. É um dos meus elementos favoritos do filme, diga-se de passagem. Se, na década de 40, dar um tilt na câmera e inclinar o enquadramento era algo super incômodo que rompia com o rigor formal, cenas com espelhos, em close, enquadrando a atriz e seu reflexo, com muito contraste de cor e câmera solta é, basicamente, a mesma proposta dos autores noir, utilizando novos recursos para causar desconforto com a forma.

Eu poderia ainda falar sobre a abordagem frequente de temas violentos nos filmes noir e neo noir, sobre o uso de fumaça e recursos para acentuar a ideia de que há algo oculto ou misterioso no comportamento dos personagens e no espaço em que a história se dá. Poderia falar sobre os close-ups extremos em plongée, ângulo do mergulho, de cima para baixo, frequentemente usado e que é um recurso narrativo para evidenciar a solidão, a tristeza, a postura cabisbaixa.

A estilística Noir é tão icônica que permeia absolutamente tudo que consumimos hoje em termos de suspense e terror. Além disso, outros gêneros também acabaram muito influenciados pela estilística noir – o cyberpunk, por exemplo, carrega muito do legado desse movimento na estética.

Mas isso teria que ser assunto pra outros textos por aqui. Quem sabe não é uma boa ideia

Vejo vocês em 15 dias. Tchau!

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