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"Dark" tem um design de produção arrojado, detalhista e minuciosamente trabalhado, que utiliza das cores para fins simbólicos e narrativos.

Pois bem, o mais novo sucesso da Netflix chega ao fim com sua base de fãs satisfeita com o desfecho e um punhado de gente com dor de cabeça pelo esforço mental contínuo exigido para acompanhar os 30 milhões de plot twists existentes na trama. Dark é uma série alemã de ficção científica criada por Baran bo Odar e Jantje Friese, distribuída pela Netflix e que desde sua primeira temporada já vinha se consagrando como um dos produtos originais do serviço de streaming mais consumidos na plataforma.

Se é que é possível tentar escrever uma sinopse da série, trata-se de um mistério envolvendo o desaparecimento de dois rapazes em uma pequena cidade na Alemanha, a chuvosa Widen, que remete à acontecimentos semelhantes do passado no mesmo local. A série acompanha, principalmente, quatro famílias – e estão todas diretamente envolvidas no enigma do sumiço dos dois jovens. Minha proposta aqui é analisar brevemente o uso de cores na série para entender como a direção de arte é uma das maiores aliadas do espectador nesse emaranhado de linhas temporais, ajudando na compreensão dessa complexa narrativa.

Primeiro, é importante dizer que a série se passa, principalmente, em três tempos distintos: 2019, 1986 e 1953 (com a evolução da trama, esse leque se abre ainda mais, abrangendo também os anos 10 e 2053, num futuro distópico). O primeiro ponto relevante aqui é entender como se dá a diferenciação desses tempos através do design de produção. É interessante perceber como a imagem esfria drasticamente seguido a ordem cronológica. Nos anos 10, há uma forte presença de tons terrosos (e até saturados!), principalmente nas construções, que formam grandes blocos de cor na imagem.

sequência de Dark passada nos anos 10, em que a fotografia, iluminação e paletas de cores toma tons terrosos

Em 1953 e 1986 temos o uso massivo do amarelo, tanto em objetos de cena, figurino,  cenário quanto na luz. Apesar da semelhança do tratamento de cor, a diferenciação entre esses dois tempos fica por conta do estilo arquitetônico, do design de interiores e, principalmente, do figurino dos personagens. A escolha dos tons quentes se dá pelo aspecto envelhecido trazido pelo amarelado da imagem, marcando claramente os tempos em que a história se desenvolve. Existe uma noção de conforto visual nessas linhas temporais já que os tons não são gritantemente contrastantes, o que dá uma impressão de que aquela realidade ainda traz algum traço de normalidade e aconchego.

Em 2019, no entanto, há uma mudança drástica na temperatura da cena – tudo fica predominantemente cinza, com alguns poucos pontos de cor e existem algumas razões para essa escolha. A primeira e a mais óbvia delas é a atmosfera fria, misteriosa e subliminar que nasce de uma estética acinzentada, onde poucas coisas saltam aos olhos e tudo se mistura – assim como na trama da série. A segunda razão pode ser pelo caráter de anunciação de um grande acontecimento catastrófico que o ano de 2019 tem para a narrativa, como se o mundo estivesse se esvaindo de cor (e, consequentemente, de vida).

Por último, temos um motivo estratégico: 2019 é o tempo em que a série nos é apresentada – as primeiras cenas da primeira temporada se passam na linha temporal atual. O grande trunfo de Dark é exatamente o que cada personagem significa para narrativa e como cada um tem um papel fundamental na compreensão do todo. Com uma estética acinzentada, o design de produção fica livre para atribuir mais carga simbólica aos personagens e aos elementos fundamentais da série através das cores. Isso nos leva à análise de um ponto fundamental: o figurino.

cena de Dark situada na linha do tempo em 1986, que evidencia bem a mudança de cores e tons

Impossível falar sobre esse aspecto sem começar pelo famigerado casaco amarelo de Jonas. Em suas primeiras aparições, o protagonista veste a sobreposição constantemente e não é por acaso – o amarelo quase neon da peça cria um enorme contraste com a atmosfera cinzenta da fotografia, atribuindo uma grande relevância para o personagem dentro da narrativa. Contrastes tão agressivos como esse, geralmente, são “desagradáveis” para o olho humano – e essa sensação de estranhamento é exatamente o objetivo, levando o espectador a compreender que há um desequilíbrio naquele contexto.

Aqui na coluna, já falamos sobre como as cores podem traduzir o estado de espírito dos personagens. Simbolicamente, uma das leituras de significado do amarelo é a insanidade – e, de fato, Jonas acaba de voltar de uma instituição de saúde mental, em que se recuperava do trauma do suicídio de seu pai (e mal sabe ele o que ainda o aguarda).

Em 2019, ou no presente da linha temporal de Dark, o cinza impera na fotografia e ambientação

Além disso, essa diferença de saturação muito marcante entre a fotografia e o figurino de Jonas também agrega uma sensação de isolamento e solidão ao arco do protagonista, retratado constantemente sozinho em planos muito abertos.

A importância do amarelo na narrativa fica realmente clara ainda em uma das primeiras cenas da série. Mikkel, um dos garotos desaparecidos, antes de sair de casa no dia de seu sumiço, está sentado à mesa com copos amarelos e azuis e um pino de tabuleiro, também amarelo. O menino está na companhia de seu pai, Ulrich. Mikkel performa um truque de mágica, colocando o pino de tabuleiro dentro do copo amarelo e, em seguida, fazendo a peça aparecer debaixo do copo azul. Ulrich pergunta como o pino foi parar no outro copo e a resposta de Mikkel é a premissa da série – “a questão não é como, mas quando”. O truque de mágica é, na verdade, uma metáfora bem clara do que viverá Jonas, o protagonista de amarelo que se transportará para outro tempo.

O tão comentado casaco amarelo de Jonas que se tornou meme e símbolo de Dark pela internet a fora

Breve curiosidade sobre mim: além de cinema, uma das minhas grandes áreas de interesse é a teologia. Análise semiótica de livros sagrados me é muito interessante e, aplicando meus conhecimentos a este caso específico, arrisco dizer que o amarelo de Jonas também é uma referência bíblica ao amarelo do ouro – elemento que quando refinado pelo fogo, é o sinal de que o messias voltará. Seria o amarelo a sinalização de que Jonas é o messias da narrativa de Dark – o único capaz de interromper a série de acontecimentos catastróficos

Você que já assistiu a temporada final deve estar pensando exatamente sobre Martha e a relação com o casaco amarelo, né? Pois é. As inferências bíblicas, para mim, fazem bastante sentido quando refletimos sobre essa questão.

Voltando na figura de Mikkel, o garoto também carrega em seu figurino uma simbologia forte. No dia de seu sumiço, ele veste um macacão preto com estampa de caveira e um casaco vermelho. O desaparecimento do menino é o pontapé inicial para o desenrolar da trama e, a medida em que compreendemos o papel de Mikkel dentro da narrativa, podemos inferir que o vermelho, em contraste com o traje de caveira, é a simbologia da dualidade de vida e morte e como esses dois conceitos precisam um do outro para existirem, ainda que sejam antagônicos. Ainda seguindo a lógica de pensar referências bíblicas através da cor, talvez o vermelho aqui também carregue um significado de sacrifício, já que [SPOILER] Mikkel precisa “morrer” para que Jonas exista.

Para finalizar essa análise de três parágrafos sobre um casaco amarelo (rindo), deixo aqui um questionamento: Dark é uma série que bebe de referências filosóficas, científicas e religiosas – sendo essa última muito relevante, desde a proximidade narrativa com a Bíblia até os nomes dos personagens, que são encontrados, em sua maioria, no livro sagrado.

O design de produção de Dark é bem robusto em muitos níveis, extremamente detalhista e bem trabalhado, tanto que fica difícil abranger tudo em um texto só – por isso a escolha do recorte de falar sobre cores. No entanto, vale ressaltar como é interessante observar a forma como a série utiliza da estética, estilística e simbologia para ajudar a contar a história, muitas vezes deixando até que a conclusão aconteça somente na cabeça do espectador e não necessariamente na tela. Certamente, os recursos visuais ajudam bastante a compreender esse universo.

Sobrou conteúdo à beça para esse papo! Quem sabe não dá até pauta para outro texto aqui?

Vejo vocês de novo em breve!

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