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"Black is King" faz uma grande celebração audiovisual repleta de conteúdo, qualidade, história, referências e luta do povo negro.

Tudo que Beyoncé representa e tudo que ela tem para dizer transcende as formas de manifestação artística. Precisaria mesmo de mais do que a música, mais do que a performance. Lemonade, o primeiro álbum visual da artista, foi uma empreitada absolutamente bem sucedida e ficamos todos com gostinho de “quero mais”. A verdade é que a espera valeu a pena – Black is King é um grande acontecimento audiovisual do ano, um prato cheio de conteúdo, qualidade, história, referências, luta e celebração.

Para analisar a estética de Black is King honrando tudo aquilo que o álbum visual representa e carrega, estou imensamente feliz em dizer que divido hoje a criação deste texto com uma mulher que admiro muito em todos os aspectos possíveis e que pode falar com propriedade sobre toda a potência e impacto da obra. Natália Amaro é uma amiga querida, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG) e produtora cultural – e é ela que conta pra gente um pouco da história por trás das referências que tanto engrandecem Black is King, além de fazer uma reflexão sobre como o filme empodera pessoas negras. Farei observações técnicas a medida em que somos guiados por essa aula de referência à cultura africana.

 

Com vocês, Natália! <3.

O álbum visual é uma continuação à trilha sonora assinada por Beyoncé Knowles-Carter da versão mais recente de Rei Leão (2019) – mais uma produção Disney, que não contribuiu por muito tempo para a incorporação de personagens ou produtores de filmes negros. Em 2020, Black is King conta a história de Simba com elenco exclusivamente negro e pelas vozes de Nala (Knowles-Carter) e artistas de Gana, Nigéria, Mali, Quênia, Camarões, África do Sul, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos. A direção é dividida entre a cantora e profissionais, em sua maioria negros, também de diferentes regiões do mundo.

A ideia do co-diretor Kwasi Fordjour, em entrevista à Forbes, era apresentar Rei Leão e sua trilha sonora visual de forma que o homem negro, participante da cultura hoje, se identificasse. Há um retorno simbólico e prático da negritude, apresentando África e América juntos, em diferentes tempos, lugares, corpos e melodias. Os movimentos simbólicos são feitos por metáforas (ou talvez mais complexas figuras de linguagem) e de maneira literal, como a inserção da bandeira pan-africana dos EUA na metade do filme.

“Que negro seja sinônimo de glória” é o convite feito por Beyoncé no começo do álbum e este é cumprido. Através das imagens e composições, a negritude é apresentada em uma proposta de resgate ao que foi perdido durante o processo de colonização do “novo-mundo” e das nações que já existiam na África. Há a menção respeitosa à espiritualidade e aos orixás, em um gesto que foge do esotérico ou místico. A recuperação das grandes nações, além das múltiplas referências à Rainha Nefertiti, que é feita pela memória à realeza.

https://www.youtube.com/watch?v=5X74GxUw_dw

A partir do estabelecimento da escravidão, os africanos que foram traficados perderam qualquer identidade ao chegarem nas Américas. As diferentes regiões africanas eram nações já estabelecidas e obedeciam a sistemas próprios de monarquia. Reis e rainhas foram roubados pelos europeus e obrigados a enriquecer – de graça, sob cárcere e violência – outros reis, completamente desconhecidos por eles até então. Em 1994, o rei perdido era um leão animado. Em Black is King, o rei é um menino negro.

Oi, é a Raquel: acho interessante pensar aqui como as locações tem um papel mais do que fundamental no storytelling. Seja pelos campos que obviamente remetem a biomas africanos, até a igreja absolutamente impactante que recebe o videoclipe de “My Power”. Beyoncé trabalhou novamente com Hannah Beachler, designer de produção de quem sou muito fã e que colaborou com a artista em Lemonade, além de já ter sido premiada com um Oscar por seu trabalho em Pantera Negra. Em entrevista, Beachler conta que a igreja, que é totalmente branca, foi como uma tela de pintura pronta para receber a intervenção da riqueza cultural do povo negro, trazendo a alegria e a beleza das referências. Após o trabalho impecável e cuidadoso da equipe de arte, o local parece menos solene, com iluminação mais forte e uma grande forma de flor no chão que, segundo Beachler, se assemelha ao símbolo adinkra da África Ocidental Bese Saka, significando riqueza, abundância e unidade. Beyoncé e dançarinas se posicionam como Nala e seu bando de leoas, em figurinos vermelho-vibrante que cria um contraste absurdamente lindo com o espaço neutro. Elas dançam descalças, performando uma coreografia que exala graça, força e beleza.

Uma das formas modernas de reparar o racismo é o enriquecimento financeiro da população negra dentro e fora da África, a maioria nos índices de pobreza e genocídio. Jay-Z, em Mood 4 Eva, representa a revolução de ser um preto rico quando diz que é Mansa Musa reencarnado: imperador do Mali no século 14 e homem mais rico da história do planeta Terra, com riqueza incapaz de ser mensurada. Musa Keita participou de uma comitiva pela África até a Arábia Saudita e doou tanto ouro à cidade de Cairo, que provocou uma crise inflacionária local. O governo do Império Mali por Mansa Musa (Rei Musa) durou 25 anos e construiu mesquitas, escolas, bibliotecas e museus que persistiram.

Os Carter: Beyoncé e Jay-Z

Oi, é a Raqueltudo em Mood 4 Eva é realmente muito empoderador – tecnicamente, a mise en scene é toda pensada para valorizar, centralizar e engrandecer os protagonistas em cena – tanto a disposição dos objetos, quanto a escolha dos ângulos. A paleta de cores é majoritariamente composta por tons quentes e fortes, principalmente o amarelo – que acentua o senso de prosperidade e riqueza pretendido. Nessa faixa, aparece outro detalhe que permeia todo o filme e que carrega uma simbologia super interessante – crianças vestidas com o mesmo figurino de Beyoncé e Jay-Z. Acho que isso conversa muito com o que Natália tem falado sobre pretos ocupando lugares sociais de prestígio e poder, com a intenção de quebrar essa ideia de que crianças negras necessariamente crescem em contextos de pobreza e marginalidade e mostrando que é possível crescer com boas oportunidades, conforto e luxo.

Black is King é elegante. Até a maldade e a tentação representadas por Scar, interpretado pelo excepcional Warren Masemola, ganham roupagem brilhante (literalmente) e refinada.

Oi, é a Raquel: eu acho que a questão da elegância do filme é um ponto muito importante. Em uma conversa antes de escrevermos esse texto, Natália me disse “pode ser bonito, leve, ser negro fora da lógica do racismo, ser preto por ser preto” e acho que esse comentário é muito preciso pra falar de Black is King. Esteticamente, é um filme absolutamente ousado. As referências não são visualmente óbvias, clichês, naquele processo semiótico automático. É um visual arrojado, complexo, que nasce de uma arte que não abre mão de celebrar suas raízes. A lógica de cores acontece em um equilíbrio perfeito entre o neutro e a mistura de cores vibrantes, o que reforça ainda mais a ideia da inserção da cultura africana em um contexto elegante. Os figurinos, por fim, são a cereja do bolo – uma celebração da alta costura feita pelo povo negro, com referências do povo negro para vestir corpos negros com elegância, arte, identidade e personalidade.

Pessoas negras são, antes de tudo, pessoas. Somos multidimensionais: temos emoções diversas, relacionamentos afetivos, amigos, famílias e muitos ou poucos dilemas. Ver uma mulher negra rica, coberta de ouro, líder de um projeto musical é revolucionário. Só é possível imaginar aquilo que é visto: é preciso imaginar e mostrar mulheres e homens negros em situações alheias à violência.

Reproduzir gerações juntas vivas ao mesmo tempo, rompe com o projeto evidente de desmantelar famílias negras todos os dias.  São imaginários que permitem a associação da negritude ao futuro, ao prestígio, ao brilho, ao centro: donos de mansões, artistas, mulheres bem sucedidas, reis, rainhas, amáveis e amorosos, integrantes de famílias, rodeado de amigos, com sorrisos no rosto. Se há críticas, são, agora, desnecessárias.

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