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Na Mise-en-Scène / “A direção de arte em ‘A Favorita'”

Na terceiro texto da coluna de Raquel Almeida, a colab discute a Direção de Arte de “A Favorita”, filme indicado 10x ao Oscar 2019.


A melhor parte de começar um novo ano é a chegada da temporada de premiações – a hora de consagrar as grandes obras do cinema dos últimos 12 meses. Apesar das muitas noites de gala, tapetes vermelhos e troféus sendo distribuídos, a cerimônia mais importante continua sendo o Prêmio da Academia – o lendário Oscar. Há quem acompanhe a grande noite somente no dia em que ela acontece e há quem viva o Oscar por meses, correndo contra o tempo para assistir ao máximo de títulos indicados que conseguir. Quem se enquadra neste segundo grupo, está vivendo essa maratona exatamente agora. Em meio ao consumo alucinante de filmes, há sempre os que nos fazem esquecer da pressa e exigem um pouco mais de atenção e tempo – A Favorita, novo trabalho do diretor grego Yorgos Lanthimos é, sem dúvidas, um desses. Depois de alguns dias digerindo essa maluquice inacreditavelmente bem executada, decidi falar um pouco sobre o brilhantismo da execução do projeto de arte desse filme, que é a minha aposta para levar a estatueta na categoria Design de Produção.

Sim, há aquela velha conversa de que atores que transformam radicalmente seus corpos vencem o prêmio de Melhor Ator ou Melhor Atriz, assim como os filmes de época ou de universos muito peculiares acabam levando as categorias técnicas de design. Apesar de haver algumas evidências para essa hipótese rasa ao longo desses mais de 90 anos de premiação, precisamos ponderar algumas coisas: atrizes e atores que passam por transformações físicas para viverem seus personagens estão dentro de um processo de completa imersão (o famoso método de Stanislavski) e o resultado estético, geralmente, é só uma pequena evidência da entrega do profissional à interpretação daquela figura.

O mesmo vale para os filmes de época ou ambientados em universos muito específicos que saem varrendo as categorias técnicas. Reproduzir um tempo que já passou (ou que sequer existiu) requer uma pesquisa extremamente detalhista de estética, formas, texturas, cores, materiais, hábitos de consumo, cultura, política, contexto histórico, manifestações artísticas, descobertas científicas e por aí vai. Reproduzir tudo isso depois é mais complexo ainda, então, ter A Favorita como palpite a vencedor de melhor Design de Produção é mais profundo do que as previsões fáceis que circundam filmes de época.

O filme se passa na Inglaterra do século 18 e conta a história da rainha Anne (Olivia Colman), uma governante frágil e Sarah (Rachel Weisz), sua amiga e amante que se aproveita do estado vulnerável da monarca para manipular as decisões políticas dela. Eis que aparece Abigail (Emma Stone), uma nova servente da casa que acaba se aproximando de Sarah e da rainha e desperta um clima de ciúmes e disputa.

Acredite se quiser: A Favorita teve um orçamento de filme indie para acontecer (mesmo com suas 10 indicações ao Oscar, ainda se trata de um filme independente) e a designer de produção Fiona Crombie tinha o desafio de recriar o universo da realeza inglesa, numa época em que a alta classe ostentava sua vida luxuosa e despreocupada sem pudor, em pleno vigor do movimento barroco, já conhecido por seus exageros. Não consigo nem expressar o grito de desespero que eu daria se chegasse um projeto desses pra mim e é por isso que hoje, escolhi falar sobre como o pensamento estratégico e a administração de verba podem viabilizar produções grandiosas, mesmo com orçamentos reduzidos.

A locação principal do filme foi um empurrãozinho inicial – as cenas externas e algumas internas foram gravadas no Hatfield House, um palácio de campo no interior da Inglaterra. Crombie contou em uma entrevista que essa é uma das propriedades mais preservadas de todo Reino Unido e que ela foi crucial para nortear a linha estética da arte do filme – a designer foi muito influenciada pela arquitetura do local, que também já contava com algumas obras de arte, esculturas em madeira e gravuras. A partir daí, começou a nascer o projeto visual do filme – Fiona contratou uma equipe de artesãos para reproduzir móveis, painéis e objetos decorativos autênticos da época. Todos os objetos de vidro, por exemplo, foram produzidos à mão! As carruagens rebuscadas também foram construídas do zero.

Aí você me pergunta “mas o orçamento não era de filme indie?” – sim, era. E o que Crombie fez com o que estava a sua disposição foi extremamente estratégico e funcional. Quando um orçamento é bem mais curto do que o ideal (estou falando isso com base na minha experiência de Diretora de Arte de produções brasileiras e de porte nada comparável a um longa metragem indicado ao Oscar), é necessário tomar decisões: é preciso escolher onde investir mais dinheiro para dar força ao projeto visual e garantir a unidade estética com elementos pontuais. Isso se torna visível nas escolhas de Crombie: caprichou nos objetos com os quais os atores iriam interagir (os chamados props) e os elementos mais robustos e chamativos de cada cenário – assim, poderia economizar na composição geral.

É perceptível, inclusive, que a arte optou por não preencher cada sala com uma quantidade muito grande de móveis – isso assegura que a linha estética continue bem definida e, no caso de A Favorita, abre espaço para as atuações monumentais do elenco (é impossível falar das atuações e não exaltar o trabalho de Olivia Colman que, para mim, fez algo indescritível e muito único – torço para que ela leve a estatueta para casa!). Além disso, a arte faz uso de elementos muito grandes em meio à espaços vazios ou com o restante do mobiliário completamente desproporcional – o quarto da rainha, por exemplo, possui uma cama de 14 metros de altura, tapeçaria do teto ao chão por todo o cômodo, mas o restante da composição possui escala completamente estranha – o que é bem alinhado com a proposta do filme, que está ali para te causar estranhamento em todos os aspectos possíveis.

Orçamento reduzido para projetos grandiosos exige um pensamento estratégico da equipe, claro, mas também é preciso que todos os envolvidos no processo de produção estejam alinhadíssimos. A fotografia e a arte, por exemplo, precisaram andar mais juntas do que nunca: todos os cenários foram iluminados apenas com luzes de velas (foram OITENTA MIL velas utilizadas, gente! Sinto muito por quem fez continuidade. Parece que não aprenderam com Barry Lyndon (1975)… mas é um projeto de fotografia genial se for bem executado – como esse foi). Bom, e, naturalmente, velas derretem e a cera suja a superfície dos objetos – nesse sentido, além do trabalho de confeccionar mobiliário e decoração do zero, a equipe de arte precisou criar uma espécie de película para proteger as peças de algum dano decorrente da cera, já que eram exclusivas e únicas.

A fotografia e a arte de A Favorita precisam dessa troca constante de ideias porque, assim, a cinematografia pode utilizar truques para esconder ou valorizar pontos específicos do cenário, bem como a arte pode ajudar a compor e fazer funcionar algum quadro que o fotógrafo esteja planejando em usar. Um bom exemplo disso são as cenas nada ortodoxas filmadas com fisheye – o diretor de fotografia Robbie Ryan optou pela lente grande-angular e fico imaginando o cenógrafo, que teve que compor um ambiente gigantesco e o produtor, que provavelmente teve que conter uma equipe gigantesca de pessoas nos bastidores, já que ninguém poderia ficar perto de onde a cena estava sendo rodada para não correr o risco de aparecer de penetra no filme. Essa ideia de usar fisheye com certeza não ajudou muito no orçamento da arte.

Um projeto de arte, principalmente para um filme de época, evoca muitas ideias e referências imediatas na cabeça de quem vai assinar a direção. No entanto, a situação de ter uma verba incompatível com o que é necessário para reerguer o período em questão faz com que a abordagem da arte seja muito mais direcionada e ancorada na semiótica. A paleta de cores, por exemplo, é extremamente sóbria – o jogo de claro e escuro aparece tanto na luz escolhida pelo diretor de fotografia quanto nos figurinos e nos cenários. Essas escolhas se justificam, semioticamente, pela referência ao movimento artístico em vigor na época mas, também, pela grana que estava curta e não permitia uma grande variedade de tecidos, texturas e cores.

Assim, o figurino optou por trazer características da época na modelagem das roupas. As cores ficaram no preto e branco, que não era nada comum para a época retratada – mas, veja como tudo se encaixa: A Favorita, em nenhum momento, se propôs a ser um filme convencional de época. Assim, o orçamento deixou de ser um problema para se tornar um ótimo guia estético: o roteiro não convencional, as atuações caricatas e peculiares, o linguajar nada apropriado para a corte, também puderam se refletir em um design de produção fidedigno ao século 18, mas com suas próprias particularidades imaginativas. Vocês repararam que os uniformes dos funcionários do palácio são todos em jeans? É, basicamente, a mesma ideia que teve Sofia Coppola jogando um all-star no meio dos sapatos de época em Maria Antonieta (2006).

E mesmo com todos os percalços e toda a racionalidade necessária para administrar um projeto de arte, artistas continuam sendo artistas: o que poderia ter sido um fator limitante para a elaboração de um projeto de arte remetendo à corte inglesa do século 18, se tornou, na verdade, uma estética com uma personalidade ímpar, que transforma a história em nome do conceito central da obra em si. Bonito demais isso.

Escolhi falar sobre o aspecto técnico e administrativo do design de produção, um lado que possivelmente não é visto ou frequentemente pensado, mas é muito difícil limitar a escrita desse texto a esse recorte. É realmente fascinante ver o que Yorgos Lanthimos é capaz de fazer. O diretor de A Favorita subverteu um gênero e praticamente criou algo único e especial, que dificulta até encontrar algum tipo de definição. A direção é inacreditável, faz tudo parecer elegantemente chulo, vulgar e superficial. É estranhíssimo, ácido, patético e engraçado demais. Emma Stone fez o sangue de Abigail correr. Olivia Colman é uma artista inspiradora, que entrega! Um jeito surpreendentemente novo de falar sobre algo recorrente nas telas de cinema – essa elite patética, egoísta, meio nojenta, obscena e tosca.

Quem sabe eu volte numa próxima oportunidade para falar das minhas interpretações de A Favorita? Fica aí uma ideia. Lembre-se que aqui há sempre espaço para debate e diálogo – converse, discorde ou concorde! Nos vemos em 15 dias, tchau!

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