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Na Diegese / “Monopólio da Ilusão”

O mercado de streaming escancara a importância de o espectador sair da zona de conforto e buscar por uma diversidade de conteúdo.

Se pudesse escolher um exemplo para ilustrar como me sinto como consumidor das grandes empresas de streaming, usaria cenas de Fifteen Million Merits. O episódio de Black Mirror protagonizado por Daniel Kaluuya narra uma distopia em que, confinados num submundo, pessoas acordam cedo para pedalar numa bicicleta ergométrica e abastecer o sistema elétrico das sociedades na superfície. Nos seus raros momentos de lazer, o personagem principal é obrigado a assistir sempre os mesmos canais, os mesmos programas e as mesmas figuras carimbadas.

Não vivemos uma situação nova. A espetacularização da sociedade é um fenômeno propenso a simplificar toda informação para caber numa forminha pré-fabricada, tornando as pessoas parte do lugar-comum. Rapidamente nos acostumamos a ingerir as mesmas feitiçarias enlatadas e assim conservamos nosso papel de eternos receptores e repetidores de conteúdo. Todo ano as mesmas premiações, a mesma cadeia de blockbusters, as mesmas comédias românticas, as mesmas novelas das nove. Me entreguei à Fina Estampa nesta quarentena. Estou adorando.

Tento contornar essa situação seguindo o conselho de Kirk Lazarus, personagem de Robert Downey Jr. em Trovão Tropical (2008): “Você nunca deve ser um idiota completo“. No filme ele se referia às bem-sucedidas tentativas de atores interpretando personagens com déficit intelectual. Tom Hanks em Forrest Gump: campeão de ping pong, herói de guerra, empreendedor da indústria alimentícia. Dustin Hoffman em Rain Man: gênio da matemática e mestre do poker. O que Lazarus tá dizendo afinal? Que a gente sempre deve buscar alguma brecha para a subversão.

Cena de “Rain Man”

Enquanto fazia minha transição para o ensino médio, me percebia numa jornada sem volta em direção à condição de cinéfilo. Já tive resistência em relação ao uso desse termo. Hoje só aceito. Afinal, é mais fácil para todos quando trabalhamos em cima de estereótipos. Se assistir e debater filmes, acumulando uma bagagem sempre crescente de conteúdos e ideologias, é algo que me faz mais feliz e seguro dentro da minha realidade, então não há reais motivos para combatê-los (o medo do desemprego). Da industrialização do meio me reconheço como vítima e também como ativista.

Assim perpetuo um ciclo projetado décadas atrás. Há quase um século, grandes estúdios se estabeleciam em Hollywood e davam início ao bem-sucedido processo de colonização cultural estadunidense. Nos primeiros anos da Era de Ouro do Cinema Americano, MGM, Warner, Fox, Paramount e RKO estabeleciam normas, consolidavam formas e prospectavam rumos para uma commodity em ascensão. Uma parte importante na capitalização desse processo foi a apropriação das salas de cinema que passariam só os filmes de determinada empresa. Uma bela panelinha que o que tinha de prolífica, tinha de excludente.

No meio desse complô, um modesto estúdio de animação começava a dar as caras. Hoje ele detém quase 40% da receita dos títulos que entram em cartaz nos Estados Unidos anualmente. Vejo no papel da Disney atualmente uma responsabilidade humanamente impossível de lidar com múltiplas empresas e franquias de forma sustentável, orquestrando um catálogo de peças cada vez mais homogêneas e monetizáveis. Tipo o monstro que come todo mundo na casa de Banhos em A Viagem de Chihiro. Um troço que não consigo racionalizar.

Sou contra a vilanização rasa de empresas multimilionárias. Vejo no maniqueísmo (tanto de viés marxista quanto libertário) uma das maiores formas de distanciamento de uma percepção concreta, humanizada e resolvível da realidade. Sempre vou ser ingênuo a ponto de defender o lugar de fala e o lugar de escuta como processos interdependentes, visando a educação emancipadora em meu foco narrativo. Dito isso: estou preocupado.

Evento de anúncio da programação do Disney+

Um excelente vídeo do canal JustWrite argumenta com base numa produção da própria Disney sobre os efeitos corrosivos da monopolização do entretenimento. É um cenário autodestrutivo para a indústria, para o consumidor e, principalmente para os artistas. Desde a compra da Pixar em 2005, acompanhamos uma assimilação desenfreada de marcas que culmina progressivamente no cancelamento ou na fusão de projetos artísticos. E, pior: a compra dos estúdios (que tem se revelado mais como uma dissolução) sempre resulta num número assustadoramente grande de desempregados.

Muitos enxergam a Disney como uma metonímia do sonho americano. A apropriação de narrativas por parte da empresa sempre foi um de seus maiores trunfos na conquista dos mercados mais improváveis ao redor do mundo. É um império que se construiu com base em adaptações açucaradas de contos de fadas. Um império que segue hoje com o mesmo modus operandi, transformando a própria ideia de nostalgia numa mercadoria, como podemos acompanhar em suas inexpressivas (porém rentáveis) refilmagens em live-action. Essa estratégia inegavelmente nos trouxe boas produções, mas expõe uma infraestrutura predestinada a colapsar num futuro não tão distante.

Não acho que a empresa ignora isso. A filmagem da peça Hamilton, criada e estrelada por Lin-Manuel Miranda, fora recém disponibilizada no catálogo da Disney+. Aqueles que já assistiram podem seguramente dizer que se trata de um projeto subversivo: a história de fundação do país norte-americano é recontada sob a ótica e a máscara dos filhos de imigrantes. Latinos, negros e asiáticos se apresentam no papel de figuras icônicas da história dos Estados Unidos como George Washington e Thomas Jefferson. Há também o protagonista Alexander Hamilton, reconhecido pelo estabelecimento de diretrizes econômicas que regem até hoje a política monetária do país – e que pouco me recordo de ler sobre nos livros de história.

https://www.youtube.com/watch?v=DSCKfXpAGHc

A graça de Hamilton atinge uma série de camadas: Tem um valor pedagógico, um valor de entretenimento e uma moral interessante (e ambígua) sobre legados esquecidos ou revertidos. A apropriação da Disney sobre essa propriedade intelectual em particular me leva a desconfiar que buscam um papel conciliador (ou seria… controlador?) dentro do contexto de opressão e homogeneização que a própria empresa ajudou a alimentar. Ou seja, podia ser pior.

Fãs de longa data de Star Wars saíram machucados depois da sessão de A Ascensão Skywalker. Podem até ter gostado do filme em alguma medida, mas a sensação de um final remendado e distante dos propósitos originais da franquia perdurou na mente e no coração de uma galera. Darren Franich, crítico da Entertainment Weekly, assim se expressou sobre o nono episódio da saga: “Não é um término, uma sequência, um reboot ou um remix. É um zumbi.” A ideia de Star Wars se materializou sobre arquétipos e referências multiculturais e seguiu seu próprio curso de forma independente, bancada em grande parte pelo próprio criador. Se Hamilton reflete uma subversão, o filme de J. J. Abrams parece desesperado em confirmar todos os medos que emergiram após a celebrada compra da Lucasfilm em 2012.

Tá certo que O Despertar da Força reciclou elementos de forma preguiçosa e desnecessária, enquanto que Os Últimos Jedi não soube nivelar os humores dentro de uma narrativa fragmentada. Mas nada tinha me feito pensar num risco real de desmantelamento da franquia até assistir ao filme do ano passado. Pelo menos a série Mandalorian garantiu uma sobrevida com seu excepcional nível de produção (e uma devoção sincera às obras periféricas da marca – o falecido “Universo Expandido” – que contribuíram tanto ou mais que os filmes para assegurar sua base de fãs).

Um sintoma decorrente da apropriação de sagas e narrativas é a limitação destas como ferramenta de estudo ou discussão. Tudo começa a ficar com cara de receita de bolo. Os clichês se acumulam e se desvalorizam na medida em que qualquer tentativa de uso criativo destes é contraposta ao apelo emocional e à vaga correspondência das expectativas. E então, só nos restaria o boicote? Ou aceitamos tudo e lidamos com a acomodação?

Gráfico do Ampere Analysis que evidencia porcentagem de conteúdo de cada serviço de streaming, organizada por década de lançamento do produto

Como mero consumidor, acho interessante olhar para os dois lados da moeda. Me reconhecer no papel de oprimido quando vou lá e pago minha assinatura da Netflix mensalmente e também no papel de opressor quando opto por assistir e comentar sobre grandes franquias enquanto há tantas outras histórias inovadoras sem a devida divulgação. Saio desse cenário dualista quando me proponho a estudar sobre um assunto que me interessa e passo a fazer minha própria curadoria. Uso das ferramentas que tenho a minha disposição para obter acesso torrencial a filmes menores ou experimentais que nenhum serviço de streaming teria interesse em veicular. Se fosse nomear um artifício para combater qualquer monopólio em qualquer instância, eu a chamaria de ‘instrução’.

Pois é por meio da busca ativa por conhecimento que passamos a girar o caleidoscópio da realidade e perceber a fragilidade de instituições ou conjunturas. Uma das melhores coisas de amar cinema é descobrir como funciona a sua distribuição fora do mainstream. Conhecer um pouco mais a respeito dos festivais é uma boa maneira de atravessar fronteiras e entrar em contato com novas possibilidades de representação, para além dos circuitos de blockbusters e premiações. Sempre aprendi que nunca devemos estudar a partir de uma única referência.

Ainda bem que existem vários serviços de streaming por aí. Bancos de dados como IMDb e Letterboxd são úteis na elaboração de catálogos pessoais que você poderá carregar para o resto da vida. A partir disso, círculos sociais começam a se desenvolver e determinam alguma sensação de pertencimento. Perceber-se dentro de um submundo de bicicletas ergométricas é o primeiro passo para transformá-lo. Ainda que seja uma transformação pequena ou ilusória, é importante almejar uma subversão da reprodução automática de valores ou estereótipos. Podemos dar o primeiro passo quando entendemos o real significado do botão de play.

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