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"No Tempo das Diligências" mostra em uma cena o simbolismo que o nascimento de um bebê tem como uma pausa necessária para um respiro de vida.

Todo nascimento é um recomeço.

Temos uma recorrente ânsia pelo dia seguinte, pela chegada do novo milênio ou da nova era geológica. Isso é reforçado pelas promessas do dia a dia que se acumulam e se sobrepõem aos compromissos adiados. A procrastinação é um estado de espírito. Por isso depositamos a fé numa intervenção divina. Ou algo próximo disso.

Bebês. Há melhor materialização para a mudança repentina? Para o esquecimento de toda ferida aberta, pulsante e duradoura de outrora? Os autores daquele bem sucedido livro sagrado bem que diziam. A mulher que está dando à luz sente dores, porque chegou a sua hora; mas, quando o bebê nasce, ela esquece a angústia, por causa da alegria de ter vindo ao mundo. (João 16:21)

O bebê aqui não é protagonista, tampouco um personagem secundário. É a representação de um acontecimento. O nascimento vem acompanhado da morte da mulher e da chegada da mãe.

 

A gente sempre com essa mania do antes… e do depois…

Parece que não lidamos bem com a ideia da continuidade monótona e pragmática com que as partículas se desembaralham no universo. Precisamos de ação. Disrupção. Só vem, meteoro!

Muitos passam a vida inteira esperando o tal acontecimento que não vem. Ou quando vem, não é do jeito que se espera. “Ahh era só isso? Esperava mais!” E quando tudo já passou, nada mais parece novo. Nada mais parece permitir a chegada do novo. Nos apegamos ao senescente fluxo de cargas gerado no hipocampo – região do cérebro que processa a memória de longo prazo.

Considero demasiadamente fria uma visão de mundo alicerçada unicamente pelas expectativas. Uma pena para quem não gostou de Star Wars: Os Últimos Jedi. Ao mesmo tempo que queremos ter o controle de tudo, exigimos também ser surpreendido por todos. Em tempos ansiosos como os de hoje, essa retroalimentação possessiva dos acasos não encontra lugar naquela que é a demanda mais universal: não tem.

 

Isso mesmo. Todo mundo é diferente. E isso é um incentivo para abaixar as suas expectativas e cuidar do que é seu. Não está entendendo? Dê uma respirada profunda e sacuda as roupas do seu armário. Você pode se surpreender de um jeito novo, com aquilo que já existia bem perto de você.

Quando a gente menos percebe, há muito mais história dentro do próprio quarto do que podemos imaginar. Um amigo meu havia guardado em um potinho alguns pelos da Tapioca, sua cadelinha de estimação que já faleceu. Isso há quase dez anos. Encontrou de repente, numa arrumação cotidiana. Não precisou parir ninguém. Apenas reativou um padrão neuronal embolorado. E tornou-se a chorar, lembrando daquele latido alegre, do rabinho balançado, da barriguinha à mostra e daquele olhar inocente pedindo por carinho na forma de “Au Au!”.

 

De volta aos bebês. Vocês já assistiram No Tempo das Diligências (1939)? Um filme preto e branco desses que o João ainda vai escrever sobre na Ampulheta (me ajudem a cobrar isso). Acontece tanta coisa nesse filme, mas há um momento especial, devagar e sensível em que todos param para ver a chegada de um bebê. O público daquele acontecimento abrange um banqueiro ganancioso, um médico alcoólatra, um traficante de uísque, um trambiqueiro galanteador, um foragido e uma prostituta. Dá pra sentir John Ford (o diretor) ali também, maravilhado com a própria cena.

Cena em que os personagens de “No Tempo das Diligências” acompanham o nascimento do bebê

O evento do nascimento é capaz de unir um grupo distinto de pessoas que sequer se conheciam. E todos observam maravilhados. Esquecem suas diferenças. Não entendem aquilo como uma solução, mas como uma pausa necessária para o respiro da vida. Quando saem do local, se sentem mais fortes, mais confiantes, mais unidos e preparados para o clímax que vem a seguir.

Me remeteu à Morte e Vida Severina, livro do pernambucano João Cabral de Melo Neto. Nos versos desse poema-livro, toda a miséria do protagonista Severino é atenuada pela chegada de um recém-nascido, um novo Severino que não representa necessariamente a salvação. Uma afirmação de que continuamos a semear os legados daquilo que queremos e daquilo que encontramos. Estranhamente nos sentimos bem com isso.

É curioso como a vida nos encanta com seus paradoxos. Ao mesmo tempo que o nascimento é uma realização, é uma transferência de responsabilidade. Como seres sensíveis, desviamos do foco e nos concentramos na semântica do milagre. Mas independente do que acontece, permanecemos os mesmos. Belchior bem que dizia.

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