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Na Diegese / “Falando sobre lugar de fala”

A arte mostra a importância do "lugar de fala", mas também comprova que com empatia e diversidade quebraremos as barreiras de vivências.

Num debate recente na GloboNews abordando o racismo, havia uma ironia escancarada: todos os participantes eram brancos. Assim como este que vos escreve, os jornalistas estavam tratando de um tema que não lhes dizia respeito. Isso é errado? Isso é sintomático. E como em toda doença, é importante reconhecer os sintomas e remediá-los.

Aquilo refletia uma maioria branca demograficamente incompatível. A resposta veio na forma de um programa subsequente dominado pela representatividade de Maju Coutinho, Zileide Silva, Heraldo Pereira e Glória Maria.

A linguagem denotativa do jornalismo ajuda a deixar as coisas um pouco mais claras. Ainda mais em um país em que aprendemos muito bem a fingir que tá tudo bem. A profissão que enfrenta crescentes golpes de desmoralização nunca se mostrou tão necessária. As bolhas estão aí, cada vez maiores, e a informação veiculada com curadoria e responsabilidade ainda é a melhor ferramenta que temos para furá-las.

Jô Soares entrevista Maria Júlia Coutinho

Mas por que elas continuam surgindo?

Ainda restringimos muitas de nossas memórias ao que vivemos num sentido presencial. Condicionamos costumes a partir da repetição de hábitos que nos afetam diretamente. Assim se forma uma cultura e é como caminhará sempre a humanidade. É como aprendemos a ler, a escrever, a fazer contas e consertar coisas. É também como adaptamos diferentes leituras do mundo dentro de nosso próprio universo cognitivo.

Entre o período em que nascemos e morremos, nos enquadramos dentro de um “lugar de fala”. Uma espécie de fronteira enunciativa em que aquilo que falo é automaticamente aquilo que me representa. Em nenhum momento desse texto, serei capaz de propor o extermínio da homofobia, do racismo ou da luta de classes. O máximo que posso fazer é relatar minhas experiências e o que aprendi lendo a dos outros, com o propósito de colocar mais um pilar nessa ponte que lentamente nos propomos a construir.

Fazem parte das minhas vivências a escuta de outros lugares de fala também. Fronteiras não servem para serem muradas. Servem para serem quebradas. Vamos deixar isso para quem pensa pequeno e não se enquadra lucidamente no século vigente.

Sempre fui muito chegado em rap. Era desses meninos brancos de apartamento que Mano Brown satiriza em um trecho de Nego Drama, com pôster do 2Pac na parede e tudo mais. Se alimentasse a minha inércia cultural, se não fosse atrás de conhecer coisas novas, é bem provável que estaria consumindo aquilo condicionado pelo meu papel social e ao meu lugar de fala “nativo”, entoando refrões do Arctic Monkeys ou do Jota Quest. E ficaria por isso mesmo.

https://www.youtube.com/watch?v=Vx1ooSzcUXk

Afinal, quem sou eu para escutar Sabotage ou ir a um show do Black Alien? O que diabos vim fazer debaixo do Viaduto Santa Tereza? “Pra ser assaltado”, diziam. Minha personalidade, minha aparência e o patrimônio familiar me reservam um estereótipo que não me sinto à vontade em propagar.

Lembro bem quando saiu o trailer de Straight Outta Compton, película sobre a história do grupo de rap N.W.A e fui mostrar todo animado para um amigo meu. Também branco. Também de apartamento. Praticamente os mesmos privilégios, com gostos relativamente diferentes. Revelando total desinteresse sobre o filme, ele respondeu: “Legal, cara! Mas o que isso tem a ver comigo? Como que poderia me identificar com essa história? Viagem sua pirar nisso daí.

Precisaria ter conversado mais com ele para entender essa reação. Instantaneamente me senti… culpado? Por gostar de rap? Por cultuar gente preta? Uma parte desse raciocínio é perceptível: só se entende o que é racismo quem sofre com ele. Contudo, limitar o debate a partir daquilo que não é vivenciado isola a questão como propriedade de suas vítimas. Estabelecê-la dentro das estruturas de poder (da qual faço parte) não é só uma opção…

Sempre fui bastante motivado a ver o mundo com outros olhos. Recebi uma educação parcialmente construtivista (e cara), que me instigava a fazer do jeitinho que Graciliano Ramos narrou em Infância: “Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei meu pequeno mundo incongruente.” Dentro dos limites socialmente impostos, a informação e a cultura recebida mantiveram um espírito de constante abertura para a aprendizagem. Minha relação com a arte, desde cedo, passou a expressar um caráter pedagógico.

Em uma resenha sobre o livro O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro, a antropóloga Thayane Tavares Freitas aponta como fundamental a problematização de questões sociais feita por aqueles que não sofrem diretamente com ela. Podemos materializar esse raciocínio no personagem de Everett em Pantera Negra; ele não rouba cenas, não almeja protagonismo e surge inicialmente como um questionador da legitimidade política e do poderio tecnológico de Wakanda. Seu desenvolvimento na narrativa ocorre pela apreensão de novas culturas e o fortalecimento de seu próprio papel social. Uma das diversas facetas que justificam esse filme como um fenômeno a parte dentro do universo cinematográfico da Marvel.

A tomada de consciência dos autores para além dos seus lugares de fala é um fertilizante natural para a longevidade de uma obra. Infelizes aqueles como D. W. Griffith e Monteiro Lobato, artistas cujos talentos se encontram eclipsados por manifestações restritas e diminutas dentro de uma esfera social privilegiada. Não é “mimimi”. É ruim. É excludente. É degradante e corrosivo. A percepção ampla e o diálogo com uma realidade que não lhes cabia seria o ingrediente para a conquista de uma relevância duradoura. A peça necessária para mantê-los perenes não só como artefatos históricos, mas como figuras literárias pulsantes e motivadoras de sensibilização.

Constam boatos de que Machado de Assis, um dos grandes autores da língua que nos unifica, jamais teria saído do Rio de Janeiro. Na biografia de escritores contemporâneos, isso é uma raridade: Aluísio Azevedo serviu como diplomata na Europa, enquanto Euclides da Cunha literalmente ajudou a construir estradas pelo Brasil. Isso não impediu que o autor de Dom Casmurro escrevesse sobre temáticas diversas e plurais, tornando-o um escritor de grande influência em outras partes do mundo. (Li recentemente que uma tradução nova de Memórias Póstumas de Brás Cubas para o inglês anda fazendo um sucesso danado.)

É possível abordar sobre experiências não vividas com propriedade. Um cuidado artístico e um conhecimento aprofundando do público e da causa são o que regem o sucesso de obras como Pixote ou Cidade de Deus, retratadas por pessoas brancas e ricas a respeito de personagens pretos e pobres. O efeito de inclusão é aparente. Em entrevista recente com Dráuzio Varella, Mano Brown apontou o filme de Babenco como grande referência para suas retratações da periferia. O filme de Meirelles e Kátia Lund concedeu ao, até então desconhecido, Babu Santana sua primeira oportunidade no cinema.

Nessas horas eu lembro de uma conversa com uma amiga que vive me ensinando um pouquinho mais sobre o que é ser uma mulher preta e bissexual. O assunto era sobre Os Incríveis 2. Tinha acabado de estrear, eu havia gostado do filme e ela também. Porém teria considerado que Brad Bird, o diretor e roteirista do qual sou muito fã, não tinha acertado ao abordar o feminismo por meio da personagem mulher-elástica. Simplesmente porque achava que ele não tinha o… “lugar de fala” pra isso.

A entidade feminina da conversa, por outro lado, se sentiu representada e ficou satisfeita com o resultado. Usou a narrativa como um ponto de partida para me ensinar sobre várias situações pela qual a super-heroína passava e que encontravam paralelos em situações cotidianas, especialmente na relação com o trabalho e com a família. Além de entregar o que prometia no aspecto do entretenimento, o filme ainda agregava um caráter pedagógico que eu, pedantemente, me recusava a aderir.

Aprender por meio da arte é um processo que exige, antes de tudo, humildade. Saber diminuir o peso de suas concepções prévias sobre uma representação enquanto se apreende novos recortes de uma sobrevivência compartilhada. Podemos inicialmente achar que sabemos de tudo, que está feito, que não há mais nada para acrescentar. E caso encerrado.

O surgimento das bolhas é inevitável. A perpetuação de contextos é o que torna elas inacessíveis. Contribuem para isso não só a indiferença como a rejeição de um diálogo dentro da pluralidade. Essa mania que temos de nos preocuparmos com o julgamento e a manutenção do status quo enquanto vozes são silenciadas e todos saem perdendo. É como seria um mundo sem jornalismo, sem arte, em que tudo seria unanimidade.

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