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Na Diegese / “A companhia de Ennio Morricone”

Ennio Morricone deixa um enorme legado com seu trabalho ímpar como maestro e compositor, sempre repleto de sentimento e genialidade.

A obra de Ennio Morricone ficou muito marcada pelos temas de Velho-Oeste que embalaram as cenas da famosa “trilogia dos dólares”, protagonizada por Clint Eastwood e dirigida pelo cineasta italiano Sérgio Leone. Os assovios, as gaitas, as referências nativistas e os corais fúnebres são artefatos prontamente identificáveis tanto nos filmes quanto em qualquer uma das incontáveis homenagens e paródias que existem por aí.

Entretanto, com mais de 300 assinaturas em longas-metragens de diversos outros diretores e gêneros variados, além de uma coleção invejável de peças eruditas isoladas, vale dizer que a importância do maestro falecido tragicamente no dia 6 de julho vai além da mera reprodutibilidade técnica.

https://www.youtube.com/watch?v=Jjq6e1LJHxw

O italiano, nascido na capital do país, em 10 de novembro de 1928 recebeu, ainda criança, um rigoroso letramento na música clássica. Aos 12 anos, já tendo dominado o trompete, entrou para a equipe de um conservatório. Estudou técnicas de composições e regência de corais sob a tutoria do compositor neoclassicista Goffredo Petrassi, cujos maneirismos são bastante influenciados pelo alemão Richard Wagner.

Sua carreira se desenvolveu a partir de incursões na música popular como arranjador de programas de rádio, instrumentista em bandas de jazz e ghost-writer para compositores já bem estabelecidos na indústria cinematográfica italiana.

 

INCURSÃO NO CINEMA

A primeira trilha de um longa-metragem creditada à Morricone veio em 1961, com a comédia O Fascista, de Luciano Salce. Nela, já é possível identificar uma ênfase nos timbres de sopros e percussões que caracterizam as marchas militares e acompanham a jornada do soldado Primo Arcovazzi, vivido por Ugo Tognazzi. Não demorou muito para o compositor deslanchar; passados três anos, Por um Punhado de Dólares era lançado. E não faltaram Hetfields e Tarantinos para se apropriarem desse momento.

https://www.youtube.com/watch?v=h1PfrmCGFnk

Eu mesmo descobri a música de Morricone por meio da trilha de Kill Bill (antes de reconhecer o autor do onipresente tema de Três Homens em Conflito). E por muito tempo achei que sua obra se restringisse àquela estética imaginativa do homem sem nome vagando solitário com seu cavalo num fim de tarde. Não poderia estar mais enganado.

O primeiro “choque de realidade” que vivenciei perante as capacidades de Morricone reside numa de suas mais curiosas parcerias. O Enigma de Outro Mundo, dirigido por John Carpenter, tem trilha assinada pelo italiano e uma outra estética sonora. Saem de cena os violões e cantos sopranos e entram os pesados órgãos e sintetizadores de baixo que identificam prontamente as composições do próprio Carpenter em suas icônicas obras de terror. Tudo indica que o italiano fez questão de emular o diretor, reafirmando uma personalidade muito mais camaleônica do que aquela autoralidade redutível que a cultura pop ajudou a consolidar.

Dessa personalidade camaleônica emerge um artista muito mais interessado em investigar os efeitos das harmonias do que suas identidades pré-programadas. Acomodação nunca pareceu fazer parte do seu vocabulário. Não por acaso, o italiano é frequentemente citado como o compositor preferido de muitos colegas da indústria, o que fica evidente nos arpejos de piano de Alexandre Desplat em O Jogo da Imitação ou as pesadas harmonias de Jonny Greenwood em Sangue Negro.

A maneira como Morricone se desprende de um determinado estilo para focar em outro é inspiradora e denota uma ausência de fronteiras quanto ao ofício da composição. Suas aguçadas referências de compositores da era romântica sempre ajudaram a reafirmar a importância das harmonias nas cenas. Mesmo com uma filmografia tão diversa e avantajada, Ennio consegue imprimir um realce singular, como se o trabalho do roteirista ou do diretor literalmente baixassem a guarda para conferir à música um certo protagonismo.

Trilhas sonoras sempre ajudam a consolidar memórias e a fabricar novos ícones culturais. A ideia de música feita para uma determinada mídia sempre me atraiu por fazer daquela mídia uma obra que não se contém somente dentro de suas próprias formatações. Cidadão Kane, Psicose e Taxi Driver não funcionariam do mesmo jeito sem as pontuações de Bernard Herrmann. O que seria de Alien sem Jerry Goldsmith? Como Beleza Americana ressoaria sem as delicadas rendições ao piano de Thomas Newman? Mantenho o questionamento para David Wise e Grant Kirkhope em relação à música dos games Donkey Kong Country e Banjo-Kazooie, respectivamente. Para os fãs de The Sims, dá para não sentir uma nostalgia perfurante escutando as escalas do piano de Jerry Martin? Acho que já deu para entender, né?

Tenho um amigo que, como eu, gosta muito de cinema e nutre grande admiração pelo filme Cinema Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore. Como grande parte da filmografia de Tornatore, a trilha é composta por Ennio Moricone. Uma parceria tão frutífera quanto a que teve com Sérgio Leone e que concedeu oportunidades ao maestro no desenvolvimento de trilhas menos aventureiras e mais amorosas, mais ou menos como Nino Rota fez nos filmes de Federico Fellini.

Foi na casa desse meu amigo que assisti ao filme e imediatamente me apaixonei pela música que embala a comovente história de amizade entre um projecionista de cinema e um futuro cineasta. Quando soube do falecimento de Morricone, prontamente pensei nesse amigo.

Verdadeiros artistas endossam o papel da arte como meio de união. A mobilização dos sentimentos pode advir de vivências distintas, mas encontra um denominador comum. Quando os laços são fortalecidos ao som de uma música ou à lembrança de uma cena, percebemos como a vida pode ser justificada pelas amizades que cultivamos. Nos sentimos seguros quando percebemos coisas em comum.

Em tempos em que a vida parece uma ordem, sem mistificação, são artistas como Morricone que nos mantém esperançosos e embriagados pela beleza que reside na simplicidade. Nos apegamos à arte e, invariavelmente, ao artista, num processo em que prevalece o lado emocional.

Até nos tropeçarmos diante da razão.

O legado que fica justifica uma das maiores biografias da história do cinema. Algumas centenas de trabalhos cuja preservação dependerão da nossa vontade de abrir a cabeça e romper fronteiras para dar uma conferida. Sinto que vou precisar viver uma vida inteira para descobrir o que há de melhor na obra de Enio Morricone. Para desvendar – se possível – algum traço de autoralidade mais abrangente.

Ele sempre estará por aqui, seja como aluno de Petrassi, investigador de timbres na retratação das mais diminutas emoções, ou como extensão da figura de Alfredo, eterno projecionista para futuros cineastas ao redor do mundo.

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