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Em 2020, tivemos que nos contentar em acompanhar muitos lançamentos do confinamento de nossas casas. Trocar ideias sobre o novo álbum da Fiona Apple ou o novo filme do Spike Lee se tornou uma possibilidade de assunto para as cada vez mais costumeiras sessões de conversas remotas. Para muitos, isso não é de grande relevância, até porque já estamos abarrotados de preocupações e incertezas. Para outros, isso pode funcionar como um veículo de transição rumo ao “novo normal”, ou pelo menos para conceder à angústia do isolamento umas boas doses de analgesia.

O escapismo é um dos efeitos mais buscados quando entramos em contato com expressões culturais. Falo escapismo não num contexto negativo, mas numa comparação com o ceticismo, que seria a descrença absoluta. É produtivo achar um cantinho na nossa cabeça para reunir nossas apreensões sensoriais e especular. Ou simplesmente “viajar”, como dizia um colega da biologia. Dá pra fazer isso sem sair do lugar, embora a necessidade de bater perna esteja gritando no momento.

Meu foco será na música. Arte sublime e imaterial que nos acompanha como herança evolutiva desde sabe se lá quando. Vou direto ao ponto: vou falar de pop. Sei lá se tenho muita propriedade para debater esse assunto, mas eu me considero minimamente antenado com algumas novidades da indústria fonográfica. Em um ano atípico como esse, algo vem me chamando atenção.

Tenho reparado como artistas que protagonizam a linha de frente de grandes gravadoras norte-americanas vem seguindo uma certa tendência na identidade de seus últimos trabalhos. O que faz Alanis Morisette em Manic, da Halsey? Que história é essa da Kesha gravar com… ela mesma, numa música cuja introdução narra a intimidação causada pela presença das Spice Girls? E o que falar de The Weeknd remoendo sua sobriedade solitária mergulhado em loops de drum n bass que parecem ter saído de um disco do The Prodigy? Os anos 90 voltaram e ninguém me avisou?

Existe um fenômeno intermitente na cultura massificada e enlatada que tanto consumimos. É a capitalização da nostalgia. Sem seguir regras estritas, esta costuma aproveitar de “ciclos” de 20-30 anos. Um tempo mínimo, eu diria, para fazer com que os adolescentes de ontem se tornem os criadores de conteúdo de amanhã.

E por que adolescentes? Basicamente por concentrarem um público alvo culturalmente estéril enquanto simultaneamente constroem seus papeis sociais. Uma tábula rasa para adorar aquele novo gênero musical moedor de tímpanos ou admirarem o cantor com cabelo colorido que estampa cadernos da Tilibra.

Esse fenômeno curioso é capaz de fazer milagres com obras, gêneros e autores que pareciam ter uma data de validade claramente estabelecida. Ao passo que crescemos e cultivamos novas idolatrias, algumas permanecem como parte do que somos. E não faz mal uma revisitação. Podemos dizer que, na cultura pop, todos tem uma segunda chance.

Vejam só a Lady Gaga, uma das maiores estrelas pop da atualidade. Ao escolher o fadado eurodance como referência para Chromatica, seu mais recente álbum, a cantora sai da zona de conforto estabelecida após Nasce Uma Estrela e reforça uma sobrevida inimaginável ao gênero que, há algumas décadas atrás, embalou festas de boates mal cuidadas, aulas de hidroginástica e programas de auditório da TV aberta brasileira. Quem garante que ela não passou sua adolescência frequentando um desses três ambientes? Depois dos primeiros versos da faixa “Alice”, não duvido de mais nada.

Não é um caso isolado, tampouco uma mera coincidência. Álbuns como VELVET, de Adam Lambert e What’s Your Pleasure, de Jessie Ware, apostam numa jogada parecida ao trabalhar infusões do synth pop moderno na música disco. Especialmente esse ano, sinto que o meio vem nos entregando alguns dos lançamentos mais autoconscientes dentro do gênero. Artefatos que, além de intertextuais, apostam na metalinguagem sem propor narrativas mirabolantes e usam da retrospectiva sonora como terreno fértil para exaltar uma das maiores graças do pop: construir pontes entre as múltiplas vivências de uma geração.

Se existe uma grande ironia nesses modismos, é a de que expoentes tidos como bregas ou atrasados sempre poderão ressurgir como sinônimo de inovação e irreverência. Justamente por comunicarem uma inspiração inusitada de um passado compartilhado. Tal comunicação é importante para ajudar a nos situarmos dentro de um contexto.

Nesse sentido, gosto de comparar o que acontece nos rankings de álbuns e singles aos eventos esportivos de proporções globais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. São demarcações temporais. Uma maneira lúdica de memorizar o que éramos, o que fazíamos e o que queríamos num determinado momento em que um refrão não saia da cabeça das pessoas e um gol era celebrado pela população inteira de um país.

Por outro lado, são menos lúdicos os momentos em que todos acompanham, apreensivos, a comprovação da eficácia de um novo medicamento. Aquele que vai permitir a reconstrução de projetos pessoais, a retomada dos encontros, dos abraços, das viagens e da vida como conhecíamos. Momentos que colocam todos num mesmo barco, à deriva, sem muita possibilidade de sonhos ou perspectivas.

Quando bate o desespero, precisamos nos apegar ao que nos mantém lúcidos e sãos. Equilibrar as buscas pela informação e pelo prazer, dentro dos limites de nossa consciência. Enquanto passo alguns dias da semana compilando artigos publicados na Science ou na Nature para me atualizar dentro das minhas qualificações profissionais, também me permito viver momentos de leveza quando coloco alguns álbuns recentes para tocar. Minha saúde mental agradece; eu não me sinto sozinho. Paradoxalmente, minhas angústias são anestesiadas pela nostalgia.

Quando a própria música que escuto me pede para considerar o passado em detrimento do presente, me pergunto como o que vivemos agora será reimaginado pelas futuras gerações. O que esse momento significará para os produtores de conteúdo de 2040 ou 2050? Sentirão saudades? A negativa, que parece óbvia quando nos atentamos aos números de hoje, pode soar difusa perante as respostas concretas e cumulativas que virão.

Se fosse para escolher um álbum para representar todo esse sentimento, elegeria Future Nostalgia, de Dua Lipa. O ritmo funkeado de “Don’t Start Now” certamente não nasceu em 2020. O refrão de “Hallucinate” tem aquele pezinho na Madonna dos anos 2000. E “Break My Heart” mostra como ela aprendeu com Charlie Puth a imitar o Justin Timberlake recém saído do N’Sync. Tudo soa extremamente derivativo. E ao mesmo tempo… necessário.

Como resumos que ajudam a entender melhor um livro, ou resenhas que desmembram uma peça de teatro, a retomada sonora que acompanhamos atualmente é uma forma de entender melhor o que construímos ao longo de tantas décadas. Temos dados suficientes para samplear velhos riffs e propor novas releituras. A reciclagem desses elementos serve como um lembrete: os costumes que passam e as apreensões que chegam fazem parte da gente. Enquanto trabalhamos nossas incógnitas, existe uma história a se preservar. Seguimos.

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