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Independentemente do gênero ou da mídia, um álbum sempre tece uma história com sua capa, melodias, timbre, ritmo e letras que nos arrebatam.

Pegue um álbum para escutar. Não importa a mídia: LP, CD, streaming ou qualquer outra que já tenham inventado. Apenas escolha uma banda ou artista, selecione aquele álbum que te chamou atenção e dê o play na primeira faixa. Deixe a tracklist rolar.

Ah, nada de modo aleatório, hein? (Mentira, pode fazer isso também)

Durante a experiência, é possível interagir com outras mídias e usufruir de outros meios. Não é como no cinema, onde aparentemente isolamo-nos do mundo exterior para investir alguns minutos de nossa vida em uma ilusória viagem projetada. Aliás, cinema não né? Acho que já faz um tempo que a maneira habitual de consumir filmes deixou de ser numa sala escura e acusticamente projetada, migrando para os cômodos iluminados e bem decorados de nossas casas.

Kanye West durante a Era “The Life of Pablo”

Nos dias de hoje, se tratando de arte e das consequências oriundas da indústria cultural, existem duas opções: consumir e apreciar. Não implicam numa contraposição, existe um diálogo produtivo até. Contudo, quando ousamos apreciar, saímos da zona de conforto. A arte assume um caráter pedagógico e se torna individualmente especial. Poemas, pinturas, danças e esculturas envolvem as mais diversas técnicas e teoremas, mas convergem na premissa universal de qualquer expressão humana: veicular sentimentos. Filmes e discos estão incluídos na equação.

Com a vida aprendi e adoro repetir: “Somos movidos por histórias”. Somos moldados por sentimentos, cuja racionalização é a base do ímpeto narrativo. Podemos tirar histórias de onde bem entendermos, seja uma mancha de tinta na parede ou um inseto esmagado na sola do sapato. E, por que não, de uma série de perturbações ondulantes num meio elástico? Numa visão cientificista, álbuns compilam a manipulação de fenômenos físicos. Muita gente não se importa de trocar a experiência de escutar um disco por uma playlist criada por algoritmos, pois o produto consumido é o mesmo.

Lembramos, porém, de que existe a entidade ‘artista’ por trás de um disco. Se tem uma capa, um título, um cuidado na masterização e uma série ordenada de faixas, pode ter certeza: ele tem algo a nos dizer! E olha que nem cheguei a falar de turnês de divulgação.

A bem da verdade, músicas separadas já nos dizem algo. Cada peça pode ser isolada e tratada como um todo ou, ainda, lançada separadamente como single. Porém, a rápida experiência, aliada ao dinamismo da vida presente é capaz de fragilizar a consistência de um discurso (bem como abrir ambiguidades). Pense num filme. Agora, pense numa cena desse filme. Você acha que a cena, sozinha, é responsável por tudo o que você pensa e sente sobre esse filme? Pense num capítulo de livro, numa estrofe de um poema, num movimento de uma dança. A coisa pode fluir, comover, mas deixa de se perpetuar. Por isso é natural que as paradas de singles da Billboard troquem de posições tão rapidamente. A maioria das faixas se adequam ao consumo imediato, e não à apreciação prolongada. De degrau em degrau, passando por playlists, mixtapes e EPs, chegamos ao todo-poderoso álbum.

Um álbum não precisa ser ridiculamente rebuscado para assumir múltiplas facetas; seu formato naturalmente viabiliza a confluência de abordagens musicais que, numa única composição, poderia ficar incompatível. Começamos procurando pelos padrões. Timbres inusitados podem surgir de repente e chamar a nossa atenção. Recortes de sons preexistentes (samples) podem cair de paraquedas em um registro predominado por condutores. Um título pode não parecer nada antes da primeira música e se transformar em uma epifania assombrosa ao final da última. A própria capa pode conter elementos aleatórios e incongruentes à primeira vista e formar rimas provocantes ao término da experiência.

Imagina o quanto está sendo dito? O quanto podemos aprender e transformar nossa visão de mundo com tais artifícios? Tudo oriundo de uma manipulação trapaceira que fazemos das ondas sonoras que roubamos da natureza.

As narrativas veiculadas numa série de faixas ordenadas fertilizam diversas possibilidades de intepretações. Alguns artistas, vitimizados pela incongruência das sinapses perante o sistema sensorial, acabam apostando num negacionismo semântico e deixando de se importar com a métrica da coisa; discos de música “experimental” podem ser bagunçados e despirocados, mas ainda servem para estabelecer canais de comunicação.

“The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, de David Bowie

Vai ver o sujeito é mesmo louco. Ou vai ver o cara tinha tanta ideia que não coube numa forminha pré-fabricada. The Life of Pablo, de Kanye West, me veio à tona. Quase meio século atrás, o álbum branco dos The Beatles também exorcizava alguns dos mais intransigentes anseios da mente humana. Já escutaram Niandra LaDes and Usually Just a T-Shirt, do John Frusciante? Com seus dedilhados poéticos e intermináveis sobre as cordas de uma guitarra desafinada, é quase um livro didático sobre o fluxo de consciência. Nenhum deles, em minha humilde opinião, chega ao dedão do pé de Ogum Xangô, psicodelia tribal-tropicalista definitiva em que Gilberto Gil e Jorge Ben retrabalharam algumas de suas mais célebres composições.

Olhando para um lado mais pragmático, encontramos os famosos álbuns conceituais. Discos que facilitam o meu trabalho e escancaram tudo o que gostaria de dizer aqui. Um clássico é The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de David Bowie, que apresentou o alter-ego icônico e definitivo da carreira do britânico em uma divertida e convidativa aventura sobre um astro de rock entrando em contato com seres extraterrestres. Uma delícia de consumir. Uma viagem sem volta ao se apreciar. Tempos recentes também trouxeram Janelle Monáe em não apenas um, mas três discos (até o momento) apresentando Cindi Mayweather (a inspiração em Bowie é evidente). Consuma o single Tightrope e aprecie o álbum The ArchAndroid sem moderação.

Tem também os que eu chamaria de pé-no-chão. Discos que refletem os contratos com gravadoras multimilionárias e que aparentemente serviriam para cumprir agenda. Para não perder tempo, me recorro ao álbum mais vendido de todos: Thriller. O famigerado registro de 1982 parece funcionar mais como uma coletânea, com hit atrás de hit alimentando pistas de dança nos quatro cantos do mundo. Transborda a pretensão de quebrar recordes e encher os bolsos dos executivos da Epic Records e de todos os artistas envolvidos.

Fica a pergunta: há uma narrativa em Thriller? A primeira música é Wanna Be Startin’ Somethin, claramente um convite à libertação do cotidiano (dando continuidade ao discurso de Off the Wall, trabalho anterior do artista principal). A última é The Lady in My Life. O que aconteceu? O protagonista saiu de casa, se divertiu, conheceu gente nova e se apaixonou! Não uma paixão qualquer. Uma paixão dificultada pela idealização (Baby Be Mine, P.Y.T) pelas disputas (The Girl is Mine, Beat It) e pelas situações mal resolvidas do passado (Billie Jean). Be careful of who you love, entoa o vocalista depois do próprio avisar dos perigos de assistir a um terror de cinema à noite na faixa-título. No final, fica a impressão de que mais um amor se foi e mais uma arte ficou. Compõe bela parte da natureza humana, afinal, transformar angústias e sofrimentos em oportunidades de amadurecimento. Quer algo melhor que a arte para isso?

Como reflexos de seu tempo, discos também podem ser uma eficiente retratação do mindset vigente. Não há documentário que nos faça sentir a apreensão do cenário sociopolítico norte-americano dos anos iniciais da guerra fria como em The Freewheelin’, de Bob Dylan, lançado em 1963. Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs é possivelmente o artefato mais fiel às circunstâncias socioeconômicas do Brasil nos anos 90, comprovando como muitos problemas continuam (ou até pioraram) desde então. Lemonade, da Beyoncé, é uma angustiante revisão de sentimentos, identidades e relacionamentos culminando numa poderosa e honesta reafirmação sobre papeis sociais e lutas coletivas. How I’m Feelin Now, da Charli XCX, já surgiu relevante por ter sido composto e gravado durante as primeiras semanas de confinamento na pandemia, além de sua identidade visual ter sido elaborada junto ao público por meio das redes sociais.

Enfim, To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar apresenta em sua cuidadosa tracklist uma aula sobre a fábrica de sonhos genocida simbolizada pelo capitalismo americano sob a qual todos estamos subjugados, usando o racismo institucionalizado e resiliente como fio condutor.

As narrativas são caracterizadas por uma sucessão de eventos. Quando escuto um álbum, eu passo pela capa, pelo título, pelos nomes das faixas que compõem a tracklist, pelas pulsações evidenciadas em cada timbre, melodia ou harmonia. Isso é só a primeira parte do processo.

“To Pimp a Butterfly”, de Kendrick Lamar

Há uma data de lançamento, um idioma, uma distribuidora, um meio de se obter acesso àquela mídia. Há também os distratores! Posso escutar Exile on Main St. dos Rolling Stones em diferentes lugares e momentos do dia. Cada elemento é um personagem cumulativo nas histórias multifacetadas que todos os álbuns – até aqueles mais “educadinhos” – estão nos conduzindo.

Como resultado da interlocução temporal, a polissemia se revela uma propriedade das manifestações artísticas. Dos esforços de apreciação, iniciamos um processo de coautoria. Nos colocamos nessa brincadeira onde sempre saímos ganhando. Vez ou outra, ampliamos nossos horizontes e deixamos abertas as portas para novas representações de um determinado tempo de vida. Reafirmamos nossa identidade como manipuladores da natureza. E eu prefiro olhar para o lado bom disso.

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