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No primeiro texto da coluna "Na Diegese", Giulio Bonanno se inspira pelo filme "Adaptação", de Spike Jonze, para falar sobre mudanças.

Há tanta história pra contar.

Eu mesmo tenho várias. Sempre vem à cabeça uma cena de filme, uma estrofe de um poema ou um parágrafo de conto que não vê a luz do dia. Surgem e desaparecem; quando teimam, apodrecem na minha vaga pretensão de ser mais do que existir. São como aqueles sonhos que, pela peculiaridade ou pela tentação, queremos retomar e jamais conseguimos. Desaparecem como lágrimas na chuva.

Certa vez, o roteirista Charlie Kaufman encontrou uma boa maneira de trabalhar isso. Criou um irmão gêmeo, mais espontâneo e bem humorado, sem tempo pra devaneios e com a cabeça proativa. Deu a ele um nome e confiou sua existência aos dotes de Spike Jonze e Nicolas Cage. Estou falando do filme Adaptação, um sucesso em termos crescentes e inquestionáveis. Um exercício divertido de imaginação que trabalha a metalinguagem do bloqueio criativo enquanto expande as fronteiras do roteiro cinematográfico como instrumento de trabalho e meio narrativo.

Elaborar em cima do próprio ato de contar histórias é uma maneira de lidar com uma imaginação trancafiada. A existência nos dá muitos motivos para isso. Desde o dia em que nascemos, anjos tortos que vivem na sombra nos guiam em jornadas pouco heroicas de ceticismo e descrença. Perceber-se inútil na capacidade de convencer os outros pela comoção é, para uns, um choque de realidade intrafegável. Para outros, processo de amadurecimento. Quem fica no meio se conforma e se nutre de interrogações. De onde vem o tal incentivo, afinal?

Num universo de guerras estelares, esse incentivo pode estar na chegada de androides antecedendo a contemplação do pôr-do-sol binário. Num mundo de magia e bruxaria, vem das cartas entregues por corujas que seus tios não querem que você leia. Nas paisagens infinitas e conturbadas da Terra Média, somos agraciados pelo recebimento de uma joia velha e mal cuidada capaz de mudar o destino de todos.

Esses clichês, as chamadas para a ação que tanto amamos reconhecer e discutir infinitamente nos dão uma sensação estranha de unidade. Já escutei gente reclamando de como somos limitados. Mas é dessa limitação que surge algo ainda maior, mais poderoso e indiscutivelmente real. Não é de hoje que somos conectados.

O mundo real é cheio de incentivos. A efemeridade poderia ser o maior deles. Parafraseando o professor Keating: somos leitores e escritores pois fazemos parte da espécie humana. Se há algo que nos define como espécie, é a noção de tempo e, com ele, da perda. Esta pode ser planejada, acidental… sempre trágica, mas nunca digna de banalização. O problema não é a tristeza não ter fim. É saber que até nos momentos de felicidade nos perdemos um pouco de nós mesmos nessa condenação implacável ao tempo. Mas, como bom kantiano que sou, trabalho incansavelmente na objetificação desse dilema. É simultaneamente minha angústia, meu conforto e meu ponto de partida.

Há diferentes formas de ver o mundo, é claro. Envelhecer bem seria saber conviver com todas elas em certo grau, respeitando as inclusivas e desconstruindo as excludentes. Gostando ou não de contar ou receber histórias, a habilidade da comunicação é aquilo que transforma conhecimento em poder. Precisamos tratar a dicção, o vocabulário e as eloquências como aliadas na construção de uma história conjunta que fará dos rastros de nossa existência algo minimamente prazeroso de cultivar. Podemos disseminar cinzas mal cheirosas ou polinizar um pouco de brilho e perseverança nos olhares dos que ficam e dos que virão.

É tão difícil assim? Ah, é sim. As artes, as ciências, pilares periféricos de países de cinzeiros mudos, jamais foram tão subjugadas. Sem muita liberdade, logo nos percebemos como políticos por essência e educadores em potencial – tá bom: influencers – e talvez seja por isso que andamos tão desmotivados. Quem quer abrigar uma nova subversão em casa quando temos a maior delas vociferando a próxima farsa que seus impostos vão custear?

Há um convite para a ação nesse exato momento. Estudando a História, com H maiúsculo, sempre vemos um momento ou outro que conectou toda uma geração. Teve o penta em 2002, a morte de um ídolo em 2009, a descoberta de uma partícula subatômica em 2012 (lembra dessa?). Não lembro necessariamente onde estava em todos eles, mas lembro de um interesse coletivo tamanho a ponto de atiçar minha imaginação.

Achei que daí sairiam algumas histórias, mas não tomei atitudes. Como diria uma ex-psicóloga: ruminei. Das minhas inseguranças, tornei-me gado inofensivo e submisso. Não recomendo. Faz mal pro intelecto. Faz mal pro indivíduo. Quando o mundo todo adoece, faz mal pro coletivo.

Daí entramos num gigante bloqueio criativo.

Não penso ser um grande contador de histórias. Gosto mesmo é de aprender, garantindo o prazer, ora lúdico, ora mórbido, de ler o mundo ao meu redor. Sair sempre de uma zona de conforto e perceber tudo por novos ângulos. Ter sempre à disposição o play na música do Caetano que me faz caminhar na Portobello road sem sair do meu próprio quarto. Entoar sempre aquele verso que me dá a força de vontade pra acordar, conversar, escrever ou trabalhar: “I’m alive”.

Embora isolados, não estamos sozinhos. Somos guiados pelo exemplo e pela mudança. O exemplo tá na linha de frente entre a vida e a morte, aguentando insalubridade, limpando a testa, enxugando lágrimas e acreditando que estamos fazendo a nossa parte. Confiando que estamos nos informando corretamente, educando nossos pares e deixando para trás o caráter ilusório, por vezes fantasioso, do mundo que existia até então. São irmãos nos conduzindo a um processo de adaptação em que o que virá depois, não saberemos.

Quanto à mudança, vou me inspirar em Kaufman e deixar parte do que fui para trás. Estávamos numa zona de conforto e não sabíamos que rumo tomar. O ponto de virada nem sempre parte das nossas mãos. É algo que acontece. De repente, somos todos heróis de uma jornada em que convivem o medo e a esperança. Alguns, sem hesitar, abraçaram o primeiro.

Faltam histórias para o segundo?

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