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"Psicose" revela mais que a essência e genialidade de Alfred Hitchcok, mas também um dos momentos mais memoráveis para um amante do cinema.

É interessante como algumas obras de arte são impactantes a ponto de seus elementos mais marcantes se tornarem unanimidades no imaginário cultural e popular. Em pouco mais de 120 anos, na ainda jovem arte do cinema, muitos cineastas criaram cenas, sequências ou obras inteiras que alcançaram esse reconhecimento. Posto assim, é seguro cravar Alfred Hitchcock como um dos cineastas que mais produziu imagens icônicas capturadas em filme.

Dono de uma vasta filmografia de películas memoráveis, em Psicose (1960) podemos perceber sua obra mais “hitchcockiana”, síntese de sua autoralidade e genialidade postas em um filme que impactou a indústria de Hollywood à época, bem como a cultura dos EUA, e se consolidou como uma obra de arte cinematográfica inesquecível.

O mais absurdo nisso tudo é que, por pouco, Psicose não saiu do papel. Ao final dos anos 50, Hitchcock se via obrigado contratualmente a realizar mais um filme para os executivos da Paramount que, por sua vez, não acreditavam na adaptação do livro homônimo de Robert Bloch. Fosse pelo Código Hays – que, com seus parâmetros, censuraria diversas partes da trama – ou pelo desapontamento do estúdio com o diretor – que havia fracassado na bilheteria com Um Corpo Que Cai (sim, um dos maiores filmes de todos os tempos) – o fato é que o contexto da produção não era dos melhores.

Assim, Hitchcock propôs bancar grande parte do filme por conta própria com um orçamento baixíssimo (dizem que girou em torno de U$800 mil dólares). Isso isentou a Paramount de responsabilidades financeiras e de ganhos com o filme, exigindo apenas o compromisso da distribuição do projeto finalizado. Com o acordo selado, toda a filmagem foi realizada em curtíssimo espaço de tempo, em uma área da Universal Studios que abrigou o cenário enxuto e econômico construído com a pouca grana que tinham. Assim nasceu um dos maiores filmes da história.

Logo na primeira cena de Psicose o cineasta exibe traços da forte personalidade que, em parte, ajudou a tirar o filme do papel. Acompanhamos um casal, ainda seminus, aproveitando um momento de escape para um encontro amoroso na rotina do dia a dia – algo que o Código Hays e a estrutura vigente em Hollywood naquela época condenavam completamente.

Naquele quarto de um hotel barato em Phoenix, no Arizona, somos apresentados à Marion Crane (Janet Leigh) e Sam Loomis (John Gavin). Ambos esperam pela solução financeira dos problemas que ele tem com a ex-esposa para se casarem e viverem juntos, sem restrições e encontros às cegas. Vislumbrando a realização desse desejo, Marion furta 40 mil dólares de seu chefe e foge dirigindo.

Desta premissa, Hitchcock desenvolve um suspense enervante e delicioso de acompanhar. Sua construção se faz por meio de uma câmera invasiva, exageradamente próxima da atriz que, por sua vez, usa de sua expressividade nos olhares para adentrar neste jogo de perseguição à sua personagem. Assim, somos magneticamente carregados para sofrer junto de Marion pelas estradas até que, num momento de desespero e sob forte chuva, ela decide sair da estrada e passar a noite no pacato e vazio Bates Motel. Uma vez que Marion é recebida pelo atencioso e prestativo Norman Bates (Anthony Perkins) e se hospeda em um dos quartos do motel, Psicose revela ser um outro filme.

Quando lançado em 1960, o longa teve uma forte campanha de marketing que repetidamente pedia aos espectadores para que não revelassem as reviravoltas da trama. O próprio Alfred Hitchcock orquestrou uma operação de compra de inúmeros exemplares do romance para impedir que leitores adentrassem à sessão já conhecendo o enredo. Por mais que acredite na força do impacto de uma primeira investida em Psicose, dizer qualquer coisa sobre o longa sem abordar certos acontecimentos da história seria vazio, para não dizer inútil.

Por isso, tomo a liberdade de analisar a trama deste grande filme com mais detalhes do que de costume. Logo quando Marion se instala propriamente e decide tomar um banho, compreendemos que a personagem está decidida a regressar para Phoenix, devolver o dinheiro e apresentar alguma explicação para o sumiço e o furto. Ao pontuar que precisa do banho como forma de relaxamento, a personagem evidencia também o seu arrependimento e a necessidade de se limpar da culpa que está sentido.

É neste ponto, então, que Hitchcock presenteia o espectador com uma das cenas mais emblemáticas e memoráveis da história do Cinema. Sim, por maiores que sejam as hipérboles e adjetivos utilizados para descrevê-la, a sequência do assassinato de Marion é instantaneamente cravada na nossa mente como um momento mítico da Sétima Arte.

Para além do impacto narrativo de acompanharmos a “protagonista” do filme ser assassinada pela figura misteriosa da mãe ciumenta de Norman Bates, a maneira com que Hitchcock resolve a sequência mantendo o horror e o choque por meio da sugestão, sem precisar de explicitar escancaradamente a violência, é magnifica. É a linguagem do cinema proporcionando um impacto elíptico.

Captando o ato horrendo, a fotografia de John L. Russel em preto e branco, escolhida pelo baixo orçamento e pelo receio do diretor em ilustrar com a cor intensa do sangue, denota uma atmosfera sombria ainda maior a todo o longa. No caso da sequência do chuveiro, a iluminação e o jogo de sombras intensificam o ato que nos é apresentado.

Potencializando ainda mais o momento – e em um olhar macro, a experiência de Psicose como um todo – a trilha sonora de Bernard Herrmann, carregada de cordas, é assombrosa (no melhor sentido da palavra) e contribui para o crescimento da tensão. Se Richard Wagner definiu o leitmotiv (melodia ou harmonia que caracteriza um personagem ou situação) na Ópera, Herrmann entrega um arranjo tão impactante que passou a ser o leitmotiv universal para facadas e assassinatos no imaginário popular. É a cereja no bolo que termina por arrebatar o espectador nesta passagem memorável pelos seus elementos cinematográficos.

Deste ponto em diante, o filme se transforma na investigação sobre o desaparecimento de Marion, capitaneada por Lila Crane (Vera Miles), a irmã da desaparecida, e do até então ausente namorado Sam. Ademais, Hithcock nos manipula da melhor forma possível, nos fazendo acompanhar o verdadeiro protagonista de Psicose que ainda estava relegado às sombras: Norman Bates.

Apresentado inicialmente como uma figura receptiva e disposta a ajudar Marion, vemos sua imagem ser subvertida enquanto acompanhamos o desnudamento de um dos personagens mais interessantes, dúbios e essencialmente maléficos do cinema. A atuação de Anthony Perkins é fascinante e delicada, especialmente quando toda a trama é resolvida e o ator abraça de vez a crueldade e a loucura inerente ao personagem. A figura de Norman Bates, o mistério entorno de sua mãe e a atmosfera de suspense mórbida que o filme emana são construídas junto ao design de produção econômico, capaz de criar uma casa assustadora para os Bates viverem e remetendo aos melhores cenários pitorescos do Expressionismo Alemão.

 

Ao final da trama e com a revelação que resolve todas as dúvidas e incertezas, acompanhamos uma cena explicativa que muitos insistem em apontar como uma grande falha. De fato, é uma sequência verborrágica e desnecessária, porém, devido ao contexto prévio da produção e a incerteza de recepção do público, fica a sensação de que Hitchcock optou por um arremate mais seguro.

Sobretudo, Psicose é dessas obras que evocam a força metafísica da experiência humana com a arte. O próprio ato de escrever sobre o filme serve, assim como a trilha de Herrmann, como um leitmotiv forte: dessa vez para o deleite que é acompanhar a genialidade e o dom cinematográfico de Alfred Hitchcock em sua essência.

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