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Se fosse necessário descrever Crepúsculo dos Deuses (1950), filme clássico de Billy Wilder, diria que se trata de uma história de amor machadiana. Por mais estranho que possa soar – afinal, nunca saberei se Wilder sequer leu Machado de Assis – o longa-metragem dialoga fortemente com Memórias Póstumas de Brás Cubas. O defunto-narrador do escritor brasileiro diz que escreve com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” e Wilder, enquanto cineasta-autor, faz o mesmo – e por consequência o seu narrador morto também – para contar um romance melancólico e sofrido com o próprio cinema.

Ter um cadáver narrando a história já denota o tom do filme. Ele é Joe Gillis (William Holden), um roteirista que sofre com a falta de projetos aprovados pelos estúdios e se encontra em uma desesperadora situação financeira. Fugindo dos cobradores de suas dívidas, ele acaba encontrando, ao acaso, a mansão de Norma Desmond (Gloria Swanson), uma atriz consagrada do período do cinema mudo. Assim, Gillis encontra a oportunidade perfeita para resolver suas questões financeiras e se manter longe do radar dos que lhe cobram: Norma tem uma base de roteiro que precisa ser trabalhado para, na cabeça da excêntrica atriz, a erguer novamente ao estrelato. O roteirista assume a função e passa a viver na rebuscada mansão da atriz, até perceber o pesadelo em que se enfiou.

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Inclusive, pesadelo é um excelente termo para descrever o retrato cínico, crítico e sombrio de Hollywood proposto pelo diretor. A estética noir e a fotografia em preto e branco contribuem para a atmosfera melancólica criada, trazendo um forte e constante sentimento de desilusão em Joe. Já que Hollywood é a terra onde os sonhos acontecem, Billy Wilder mostra em Crepúsculo dos Deuses que lá também é o local onde os pesadelos de muitos são construídos.

Com um enredo forte articulando um dilema moral interessante para o protagonista, Wilder concebe um excelente trabalho de direção e escrita. Em meados da trama, Joe se apaixona por Betty Schaefer (Nancy Olson), uma jovem e entusiasmada avaliadora de roteiros que busca crescer dentro do cenário e, quem sabe, se tornar ela mesmo uma roteirista prestigiada. O contraponto criado pela personagem é instigante porque Joe encontra cada vez mais dificuldades de se encaixar e se estabelecer no sistema hollywoodiano que Betty tanto acredita. Ao mesmo tempo, ele tem uma vida dupla no palácio de Norma buscando aproveitar a oportunidade de resgatar a estrela do cinema mudo junto com a memória de um cinema que passou a ser visto e tratado como ultrapassado, superado e obsoleto.

O fato do protagonista se apaixonar pela jovem idealista que enxerga Hollywood como a terra das possibilidades é, minimamente, poético. Uma relação que diz também do desejo do próprio Joe em acreditar na ideia de um cenário em que ele ainda consegue ter sucesso – o que o leva a se afastar da imagem reluzente que ele, em dado momento, nutriu da diva isolada em sua própria fortaleza de loucura, melancolia e solidão.

Em dado momento de “Crepúsculo dos Deuses”, Joe e Norma assistem aos antigos filmes mudos que a atriz protagonizou

São estes os sentimentos que emanam da tela, pelo retrato cínico e poderoso de Wilder. Suas escolhas de enquadramentos e a forma como usa a profundidade de campo dão um sentido ainda maior ao que o roteiro sugere. Norma é uma estrela, um ser mitológico, uma figura levantada a um patamar divino e, se ela se sente e se enxerga como uma deusa, nada mais simbólico do que viver em um palácio que funciona como um santuário. O diretor capta os cenários imponentes e adornados para mostrar o luxo que a atriz ostenta e evidenciar tanto a possibilidade do sucesso, quanto o vazio dessas conquistas e o impacto da solidão na atriz.

O grande tema nessa conversa sobre fama e cultura das celebridades é, sobretudo, o próprio cinema. Wilder é claro, crítico e duro no retrato que faz em Crepúsculo dos Deuses e, talvez, o mais interessante deste discurso é o compromisso que tem com a metalinguagem. Já que o longa é, também, uma história de amor melancólica em relação à própria arte, o diretor opta por tecer essa narrativa dando espaço a figuras importantes do cinema mudo e que foram relegadas ao esquecimento.

A atuação de Gloria Swanson – prestigiada atriz de filmes mudos – é pautada na excentricidade da personalidade de Norma e, principalmente, na expressividade facial, no exagero, no comportamento por vezes performático que tanto marcou o tom das atuações dos filmes mudos. Swanson mais do que entende o que a personagem simboliza, ela mesma foi uma das figuras mais marcantes a estabelecer este padrão.

Dando mais peso à metalinguagem, Billy Wilder insere na trama Erich Von Stroheim – prolífico diretor que trabalhou com Swanson em diversos projetos – como o mordomo de Norma Desmond, e Cecil B. DeMille, icônico cineasta dos filmes mudos, interpretando a si mesmo. Estas figuras ilustres, gradativamente esquecidas quando o cinema sonoro caminhou em ritmo acelerado, potencializam as críticas de Wilder em uma dialética que trabalha o cinema como objeto de estudo e crítica de si mesmo.

Gloria Swanson e William Holden

Dessa história contada por um “narrador-fantasma”, que de tanto almejar o status de celebridade no efêmero mundo de Hollywood só alcançou a morte, temos como encerramento um dos planos mais bonitos já captados. Na busca pelo tão desejado close-up, fosse ele de Norma Desmond ou de Joe Gillis, o filme fecha com a turva imagem de uma alucinação. Se a atriz é retratada como um ser divino em seu santuário, nada mais coerente encerrar Crepúsculo dos Deuses como um devaneio crítico, melancólico e transcendental.


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